GOTH
Ela caminha a passos largos e rápidos entre a multidão. Os cabelos lisos, longos e negros, embalados pelo vento de mais um crepúsculo; as luzes começam a se destacar na cidade, anunciando a chegada de mais uma noite.
A respiração ofegante denuncia sua ânsia, as mãos geladas, seu nervosismo. Sente a boca seca, apesar da fina chuva; o pesado, negro e protetor sobretudo, esconde o quase imperceptível tremor dos dedos nas mãos brancas e finas, de unhas negras e afiadas, ao tempo em que aquece o esbelto corpo de seios fartos e pernas grossas, que desviam a todo momento de outros seres à sua frente.
Seus passos exprimem decisão, força e pressa, ao tempo em que inspiram desconfiança e medo às simples almas que a observam. Não olha para os lados, apenas vislumbra um ponto imaginário à sua frente e segue-o, apesar de parecer nunca alcançá-lo. Os olhos, rápidos e atentos ao horizonte, parecem desdenhar da distância, das pessoas e do mundo. O coração bombeia sangue nas finas e verdes veias, num ritmo louco, frenético; lembranças povoam sua mente, que por instantes, resume-se ao seu mundo: imaginário, seguro e belo.
As esquinas passam como raios numa noite tempestuosa, pessoas não são mais que simples e ínfimos obstáculos e os sons da noite, para ela tão distantes, não passam de leves ruídos. Rostos, cenas, pessoas, figuras, lugares, medos e prazeres passados invadem sua memória com ferocidade, rapidez e dor. A chuva para.
Minutos depois, seus cabelos embaraçam ao gélido vento, no terraço do prédio mais alto da cidade. Os olhos, sempre atentos e vigilantes, contemplam a imensidão que a separa do fim. O firmamento parece esmagá-la de encontro ao chão; encara-o com amargura e desprezo. Negras nuvens passam sem dar importância a sua impotente algoz.
Sente um arrepio que se apresenta num incompreensível misto de prazer e medo. Um passo em direção à beirada. Para. Metros abaixo, luzes vão e vêm num confuso e enervante espetáculo de cores. O vento parece empurrá-la para cima, enquanto ela insiste em voltar sua atenção ao que está abaixo, buscando coragem para o passo final. Uma lágrima cai e desintegra-se segundos após, antes de tocar o chão. O coração para. Os braços pendem frouxos, ao lado do corpo. A boca, rubra e de finos traços, contorce-se numa figura indescritível, que tanto pode significar tristeza, quanto indecisão.
O vento ruge. As nuvens preenchem toda imensidão do céu, até onde se pode enxergar. Resíduos de gritos, sirenes, choro e mortes chegam de todas as direções, aumentando o turbilhão de pensamentos soltos que inundam sua mente juvenil. Trovões ribombam no céu, como se lhe cobrassem uma decisão. Uma forte lufada a faz desequilibrada e cair; e enquanto cai, o torpor invade seu corpo, paralisando-a. “Ainda não!”, pensa.
Risos, choros, bons e maus momentos voltam à memória com intensidade e clareza surpreendentes. Tudo parece menos ruim agora, mas de que adianta esta certeza neste momento? A primeira gota da chuva atinge seu rosto e, logo após um baque surdo, sente a cabeça latejar, seu corpo inteiro doer. Leva a mão à nuca e sente o visco quente do sangue, encharcá-la, sem entender o que se passa. Com espanto e algum alívio, percebe-se no terraço, encarando as gotas que caem do céu, mas – ironia atroz!- não percebe o largo sorriso que se desenha em seu rosto, por estar ocupada demais, admirando o belo, persistente e corajoso feixe escarlate do pôr-do-sol que abre caminho entre as negras nuvens a sua frente.