O LOCUTOR
O céu não estava nem tão cinza assim, pequenas manchas azuis venciam a chuva, e o vento era úmido e morno. O locutor se enxergou nas poças de água no asfalto e tremeu em calafrio. A temperatura ambiente não condizia com a do seu corpo.
Nunca havia falhado. Aliás, ainda não tinha chegado aonde desejava, uma longa estrada abria-se à frente, porém sua voz recusou obedecer à ordem do seu cérebro, à ordem da sua alma. As pessoas lá embaixo esperavam estremecer todos os cantos da praça, não tinha importância o que ia dizer e sim como dizer. A primeira sílaba saiu forte, fez as caixas de som vibrar o palco e atravessou a multidão como uma onda de choque. A segunda sílaba simplesmente... não saiu! Um vácuo. O tempo imobilizado pela busca da correção, busca infrutífera, que só levava à certeza que o próximo instante viria autoritário, exigindo acontecer. Então a terceira saiu normal e o resto da apresentação terminou sem incidentes. Foi quando olhou o poderoso Cisne, seu contratante, e enxergou o olhar de reprovação. A partir deste momento, soube que sua carreira estava encerrada. Talvez estivesse enganado.
Na segunda feira, foi chamado ao escritório do Cisne, que o recebeu carinhosamente. Falou o quanto era seu amigo mas, por motivos de custos, teria que cortar seu cachê pela metade, nada pessoal.
O locutor saiu pela calçada, olhando as poças no asfalto e sentindo o dia mais frio do que era.