(Brasília, 09/10/2008)
7h30 da manhã: Jorge já não agüentava mais aquele trânsito de loucos. Para ele, aqueles que estavam ali, eram todos loucos, loucos varridos. Fumaça de caminhão na cara, motoqueiros que passavam entre os carros, como se aquela faixa fossem deles, atrevidos que arriscavam as suas próprias vidas e as dos outros. As pessoas apressadas, pra chegar à escola do filho, ou ao trabalho. Jorge vivia a questionar esse sistema que privilegia a pressa, a produção, os resultados, etc. E essa pressa, concluía, talvez fosse, quem sabe, pra chegar e não fazer nada. Um paradoxo! Um sistema onde o trabalhador é avaliado pelo cumprimento de horários, jornadas, e não pelo que efetivamente realiza.
"As pessoas, na verdade, não se suportam. Privilegiam a cultura do não-encontro!", asseverava Jorge, que também estava com pressa, mas por um justo motivo. A esposa apimenta aquelas elucubrações sobre o ritmo das cidades grandes, provocando ainda mais, dizendo que ele deveria ter saído de casa mais cedo. Foi o estopim para Jorge, que só não gritou porque os carros começaram a parar.
- Mas o que é isso, meu Deus? Esse trânsito já vai parar de novo?!
- Deve ter sido um acidente, pai. Conclui o pequeno Lucas.
Há pessoas que, em situações como essas, já se acostumaram. O ser humano é um ser fantasticamente adaptável! Eles chegam a desligar o motor do carro e pegam um livro; ou escutam uma música, alguns acendem um cigarro, pra despistar o nervosismo. Não é de estranhar que noutro dia, num congestionamento daqueles, um grupo de rapazes e moças, que estavam numa belina 76, estacionou no canteiro central, tirou do porta-malas uma churrasqueira e, ali mesmo, providenciou um descontraído lazer. O corpo de motociclistas da polícia militar logo encostou pra verificar se eles estavam bebendo. É evidente que sim, visto não ser humanamente compreensível um churrasquinho sem bebericar. Mas eles garantiram ao guarda que o motorista não estava bebendo.
De repente, do local do acidente, não muito longe do carro de Jorge, naquele congestionamento infernal, surge uma discussão:
- A culpa foi sua que bateu atrás! Deixa de ser cara-de-pau e prontifique-se a pagar o conserto. Disse um deles.
- Não senhor, eu guardava a distância devida. Quem mandou o senhor não saber dirigir e frear bruscamente. Replicou o outro.
- Eu freei sim senhor. Você é que não estava prestando atenção. Deveria dirigir com mais cuidado.
- Então a luz de freio não está funcionando!! Você sabia que isso dá multa?
- Ah, rapaz, já vi que você não está disposto a ser razoável. Vamos esperar a perícia.
7h55: Com isso, o trânsito ficou parado, até que a perícia pudesse chegar. Alguém chamou os bombeiros:
- Corpo de bombeiros, em que posso ajudar?
- Olha, aqui na BR 020, próximo ao balão do colorado, estamos num congestionamento, houve um acidente horrível e os carros todos estão parados. Acho que a fila já vai pra mais de cinco quilômetros, está chegando perto de Sobradinho.
- Ok, estou passando um rádio pra viatura. Fique tranqüilo estamos a caminho. Atenção, base chamando viatura do trecho do balão do colorado, câmbio!
- Em QAP. Respondeu, da viatura, o sargento do corpo de bombeiros.
- Comunicação de acidente grave na BR 020, próximo ao balão. Verificar. Câmbio!
- Positivo, estamos deslocando para o local. Câmbio final!
Enquanto isso, apesar de alguns se acostumarem com a situação, o nervosismo era geral, principalmente do Jorge que nascido e criado numa pacata cidade do interior do Maranhão, veio pra Brasília por causa de uma remoção ex-officio da esposa.
- Como é que pode escolher viver numa cidade como essa?! Dizia Jorge, que saira de casa apressado pra levar a mãe ao aeroporto; o vôo estava marcado pras dez horas da manhã e o relógio já marcava quase oito horas.
Dona Isaura, mãe do Jorge, não podia perder essa viagem, pois tinha assuntos urgentes a tratar em sua terra natal, a pendência judicial do inventário de seu falecido marido. O pequeno Lucas estava ansioso, pois Jorge, seu pai, prometera em levá-lo, pela primeira vez, pra ver avião ou helicóptero. Marta, a esposa, acariciava a nuca de Jorge, para tranqüilizá-lo. Enquanto isso, Misha, a pequena cadela poodle, com o pescoço pra fora da janela do banco de trás, latia sem parar pras pessoas dos outros carros congestionados.
8h30: Tentava passar entre os carros a viatura do corpo de bombeiros com o sinal de alerta ligado. Os carros tentavam abrir caminho, mas o espaço era estreito. Em face da pressa de todos, os carros se acumularam tentando buscar passagem, inclusive no acostamento, donde já não havia passagem. E o tempo foi passando, de modo que, com muito esforço e paciência, a viatura dos bombeiros conseguiu chegar ao local do acidente por volta das oito e cinquenta.
Jorge e a dona Isaura estavam desesperados, pois no bilhete de passagem dizia que o passageiro deveria chegar com antecedência de pelo menos uma hora. Pelo visto, a dona Isaura iria perder o vôo. Os nervos de Jorge estavam pra explodir com aquela situação. Na verdade ele nunca fora uma pessoa calma. Aquela situação estressante, entretanto, elevara a mil os nervos de Jorge. Já que o vôo estava perdido, ele queria pelo menos poder voltar pra casa, mas com aquele turbilhão de carros por toda volta...
Enfim, com a chegada do corpo de bombeiros no local do acidente, o sargento do corpo de bombeiros de cara verificou que a situação não era tão grave assim, e concluiu que a requisição dos bombeiros no local havia sido um trote, pois não havia vítima. Verificara apenas um pequeno amasso no pára-choque traseiro do fusca. O outro carro, um importado, não tivera danos. Quando o sargento pediu que os carros fossem retirados do local pra abrir passagem e liberar o trânsito, começou então outra confusão, mais uma vez pelo dono do fusca.
- Não senhor, eu não aceito essa ordem. Só saio daqui com o boletim de ocorrência da perícia técnica, onde estejam consignados os danos e o responsável pelo acidente. Eu não posso ter esse prejuízo. Eu só tenho esse carro na vida.
- Mas meu senhor, a avaria é de pequena monta, o senhor pode conversar com o dono do outro carro e entrarem num acordo. Tentou resolver o sargento bombeiro.
- Sargento, o moço aí não é de acordo não. Já tentei conversar com ele. Ele bate atrás do meu carro e ainda diz que o errado sou eu.
Na realidade, o dono do fusca não tinha tentado acordo nenhum. Como a avaria era pequena ele tentava tirar um proveito maior daquela situação, deveras angustiante para milhares de pessoas que atrasavam seus compromissos. Para registrar a ocorrência e lavrar o boletim de acidente era necessária a presença da polícia rodoviária, que só então foi acionada para a solução daquele impasse.
9h30: Com a mesma dificuldade dos bombeiros a viatura da polícia rodoviária conseguiu chegar ao local do acidente, mas aí a crise nervosa já atingia a todos. Foi quando um homem gritou bem alto para que aquele cachorro parasse de latir. Num súbito movimento, Misha conseguiu largar-se do braço de Lucas e agrediu a filha desse mesmo homem. Inelutavelmente, numa crise de fúria, o homem pegou um revólver no porta-luvas e atirou na cadela, vindo o projétil ricochetear e atingir também a Lucas.
Ouve-se um grito de desespero, era a mãe do pequeno Lucas, que chorava sem parar ante o filho ferido. A comoção era geral. O rapaz que atirara, ante a insensatez do que fizera, sai correndo mato adentro, deixando no carro a filhinha, que se fazia acompanhar da babá. Jorge, a essa altura, em movimentos de loucura e desespero, procurava um meio de sair e levar o pequeno Lucas ao hospital, pois a respiração já escasseava e o sangue que derramava era muito. Mas o carro estava bem no meio do congestionamento e sair daquela situação era impossível. A polícia rodoviária, nesse momento, aciona, via rádio, o helicóptero da unidade de operações aéreas. Em poucos minutos, o pequeno Lucas, que queria ver avião ou helicóptero, era levado por um deste ao hospital, vindo a sobreviver.
Depois desse grave incidente, solucionado a tempo, a polícia rodoviária chegou ao local do acidente, verificando que ele já havia se desfeito, voltando o trânsito ao normal.
10h30: Viu-se, de mansinho, sair o dono do fusca, causador de todo aquele congestionamento, cujas avarias não valiam mais do que poucos reais, que numa rápida avaliação dos que estavam ali, resultou num acordo entre as partes.
Álgum tempo depois o rapaz que disparara o tiro fora encontrado pela polícia no matagal, tremendo de medo. Foi conduzido à delegacia da polícia civil.
Todo aquele transtorno e aborrecimento causado a toda aquela gente, somado ao custo da demora e atrasos de milhares de cidadãos que tentavam se deslocar para seus compromissos, não valeria um milésimo sequer da vida do pequeno Lucas que, embora, por sorte, tenha sobrevivido, ficara sem sua pequena cadela Misha.