O DELEGADO
Antes de ingressar na empresa, o rapaz trabalhara como escrivão numa pequena cidade do Recôncavo. E como naqueles tempos tal cargo investia-se de autoridade, não raro fazia as vezes da autoridade maior, substituindo-a em pequenos casos e diligências.
Mas seu primeiro caso não foi feliz. Arroubos da juventude. Aproveitara-se da ausência do delegado, chamado à Capital, no dever do seu ofício. Tudo correra bem durante o dia: definira atribuições, dera ordens, humilhara os presos, lubrificara a arma. Tudo como mandava o regulamento. Faltava-lhe apenas uma detenção, prender alguém, para coroar o seu dia.
À noite chegara a sua oportunidade, o seu grande momento: um caminhão desgovernara-se, perdendo o freio, indo de encontro ao muro de uma casa. Não houve vítimas, feliz ou infelizmente. Comunicado, imediatamente deslocou-se para o local do sinistro. Na rua, marcas de pneu travado no chão de terra batida, cacos de vidro espalhados por todos os lados, uma velha chorosa, de nervos abalados e um pacífico jegue a apreciar a cena, como num presépio. O irresponsável motorista fugira. Apurados os fatos, foi informado que a culpa daquele era apenas parcial. Tentara desviar-se do animal, que mascava pacificamente o seu capim no meio da rua, atingindo a casa.
O escrivão, naquele momento um verdadeiro delegado, sentiu-se um tanto frustrado: não haveria culpado a encarcerar. Não se fez de rogado: o culpado, então, o grande réu, era o asinino. Imediatamente mandou que fosse recolhido ao xadrez, para averiguações. Não adiantaram as objeções dos praças quanto ao ridículo da ação. O pacífico animal foi trancafiado entre outros malfeitores, reduzido à condição de criminoso.
O escrivão-delegado dormiu de alma lavada. Anos depois, já em outro emprego, não tinha como fugir à ironia dos colegas que moravam na região. Para todos era Delegado, o homem que prendeu o jegue e entrou na história da cidade de modo cômico. Não fosse o animal ter feito suas necessidades ali mesmo, atrás das grades, poluindo cela e adjacências com o odor agridoce do seu estrume - despejado tristemente por medo da possível punição ou pelo amargor da saudade por sua linda jumentinha - talvez ninguém viesse a ter conhecimento da sua peripécia.
Delegado, o homem que prendeu o jegue, notícia de jornal, não teve sorte. Delatado pela fisiologia animal, perdeu a pose e ganhou o apelido, que o acompanhou até à aposentadoria.