Munira e o mar

Quando era pequena, Munira andava na praia. Todos os dias. Ela imaginava que seus pés fossem a caneta de algum compositor atrapalhado que não decidia que notas colocar na pauta e então vinha a onda e as apagava. Por isso o mar tinha sempre aquele som de multidão. Eram as músicas incompletas desse compositor. Às vezes, Munira corria imaginando que se corresse muito, talvez desse tempo de completar uma melodia. Mas nunca dava. As ondas eram implacáveis em sua tarefa de apagar os registros na areia. E assim ela crescia agregando notas a essas sinfonías atrapalhadas, enquanto o compositor, coitado, nunca completava a sua obra...

Quando Munira cresceu começou a escrever cartas para o mar. A princípio eram frases curtas como "obrigada pelo banho" ou "você estava muito agitado hoje". E escrevia para que a onda engolisse e todo o mar soubesse do que ela pensava. Aos poucos os textos tornaram-se verdadeiras cartas, desabafos, conversas, memórias, histórias e, à medida que suas emoções foram ficando mais complexas e intensas, mais longas ficavam as horas junto ao mar. É claro que não dava tempo de escrever tudo, porque a onda não é uma leitora muito paciente. Ela simplesmente apaga e volta. Apaga e volta. Mas Munira escrevia... Esperava ela alguma resposta? Ou era só tempestade de palavras aprendidas no balançar das águas?

Certo dia ela sentou-se e não quis escrever. Viu o céu azul e as nuvens brancas e o mar verde claro e a pequenez de seus olhos. Sabia que por mais palavras que tivesse, não conseguiria olhar aquela imensidão. Como eram poucos seus olhos tão pequenos! Ao fundo, o vento soprava as canções incompletas do compositor atrapalhado, junto com as gaivotas e demais aves marinhas. Resumo de mar nos olhos da menina, como se o coração nos cobrisse de passos lentos.

Até que de repente algo estranho aconteceu. As ondas subitamente pararam e do mar surgiu um homem muito idoso, coberto por um manto branco e de pele retinta. Seus olhos pareciam um espelho antigo e seus cabelos a espuma do mar. Ele andava com um cajado que ao mesmo tempo lhe dava o aspecto frágil e majestoso. Não mancava, mas também não era firme. Apenas ia, como se o vento o levasse. Foi em direção a Munira e disse:

- Venha!

- Quem é você? - perguntou a menina

- Eu sou aquele que guarda a memória do mar - respondeu o ancião.

- Como assim? - perguntou mais uma vez.

- A memória do mar, Munira, é música que não se ouviu, mas que pode ser. É a carta que não chegou, mas que se pode ler, é o sonho que se sonha ser... - respondeu o Ancião enquanto sua mão revelava tesouros e cartas de um tempo esquecido.

Munira, então, pegou na mão dele e seguiu em direção ao mar, que se abriu como um reino novo. Lá ela viu não só navios afundados e peixes abissais, viu cores e memórias, vozes e calores que jamais imaginou. Aprendeu que as palavras são líquidas, podem gelar um coração, podem amolecer, podem quebrar, mas também podem voar e causar tempestade e, acima de tudo, que a memória do mar é a mais que a palavra mar ou memória em si. Por isso ninguém bebe da água do mar. Por isso a terra flutua nas costas do mar, ela flutua nas costas da história.

Quando ela voltou, não sabia mais se era sonho ou se era encantamento. O que se sabe é que desde então, Munira nunca mais deixou de contar histórias. E as contou até que um dia escreveu uma última carta ao mar. E então veio o guardião, com sua roupa branca e veio o compositor atrapalhado e a água se abriu mais uma vez para que ela habitasse, agora definitivamente, a memória do mar.