Foto Pintura: Graça Siqueira
ELA, PASSARINHO.
Ela sorriu sozinha, lembrou da sua infância, da sua intensa vivência na casa grande, alpendrada, no meio do árido sertão dos Inhamuns. Acordava cedinho, olhos remelados, cabelos duros e assanhados. Odor forte de xixi, na rede e no lençol molhado, aquilo fazia parte do seu amanhecer. Seguia, rapidamente, para a cozinha em busca do copo de alumínio, o maior de todos, e, em seguida, dirigia-se ao curral, onde sua mãe encontrava-se, ordenhando a vaca leiteira, de bezerro novo, que produzia o leite puro para o consumo diário da família. Adorava o cheiro do curral, o leite mungido, quentinho, o bigode espumoso no buço, após a virada do caneco até o último gole. No terreiro, todos os animais da fazenda, o aroma das criações, compostas de ovinos, caprinos, suínos, emanava no enorme terreiro de terra batida e avermelhada. Galinhas gargarejavam, alegres com o raiar do sol, o velho galo arrastava as asas num gostoso canto ostentoso, ouvido a distância. O papagaio, feliz, murmurava no alpendre, chamando o preguiçoso cachorro Tupã que balança o rabo, contente. Meu pai, sentado numa cadeira de couro cru, aguardava a primeira alimentação do dia, composta de cuscuz, coalhada, leite quentinho e o gostoso cafezinho caseiro. A rotina era a mesma todo santo dia, mais tarde a ida à cacimba buscar água cristalina em cabaças, muito divertido, uma rodilha na cabeça e o faceiro equilíbrio da cabeça, por caminhos estreitos, onde, vez por outra, uma cobra venenosa surgia de repente. Perto do meio-dia, no caminho da roça com depósitos de comida para o almoço dos trabalhadores contratados para o plantio de milho, feijão, e outras legumes cultivados na região. O descanso, após a refeição, debaixo da árvore, onde, sob o sol a pino, ouvia-se o canto do bem-te-vi que a menina imitava risonha. Gostava de apreciar o espantalho vestido de camisa branca, chapéu de palha no meio do plantio para afastar os inocentes passarinhos que buscavam as sementes já plantadas. Para ela, tudo era alegria, passar os passadores da cerca, procurar por entre as varas tortas ninhos de rolinhas, encantada, olhava os filhotinhos ainda peladinhos, aconchegados pela cuidadosa mamãe. Seguia saltitando, o vestido de chita sobrevoava, conduzido pelo vento quente, os arbustos secos na beirada do caminho à espera das primeiras chuvas e o voo dos urubus sob o céu com nuvens brancas e passageiras. Ela sorria, sorriso largo, rostinho rosado, tamanquinho de grega colorida, cabelos desalinhados e sempre com um cipó seco na mão para riscar a areia fina por onde pisava. Ela, tão pequenininha, irradiava as belezas do sertão, sentia a pureza em tudo que via, na boneca de milho, na calunga de pano, na borboleta branca, na fileira das formigas, no temido maribondo vermelho, na abelha na flor do jasmim, no beija-flor e no besouro cavalo do cão. Ela sentia o aroma do campo, amava o despertar do dia, andava sempre acompanhada da lua, o anoitecer, o deslumbre das estrelas, o canto da coruja, os dias de chuva, o coaxar sinfônico do sapo e o canto exuberante do rouxinol. Ela, rosa silvestre, fascínio do campo, perfume das flores e a magia de ser criança.
Correção Ortográfica:
Humberto Fontenele Lopes