O Relógio

Marquinhos gosta de ouvir Vô Manoel contar como eram as coisas no tempo de sua infância. Quando menino nadava no rio próximo a sua casa. Lia gibis embaixo do Jequitibá-Rosa e passava horas na rua brincando com os amigos. Sua brincadeira predileta era a bétia. Ele se gabava de ser muito bom nesse jogo. Uma vez, com uma tacada certeira, mandou a bola do outro lado do rio. A velha árvore parece que sempre existiu. Hoje ela é o centro da praça, bem em frente da loja de antiguidades do Sr. Abdias. Aliás, Vô Manoel prometeu levar Marquinhos a essa loja no dia do seu aniversário de sete anos. Marquinhos é muito curioso e quer ver como era a máquina de escrever, o projetor de filmes, as máquinas fotográficas, e principalmente os relógios.

No dia 23 de fevereiro, por volta das duas e trinta da tarde, foram os dois caminhando em direção à loja. Atravessaram a ponte de concreto sobre o rio poluído, chegaram à praça da árvore e esperaram o sinal abrir para que pudessem cruzar a faixa de pedestres. O Sr. Abdias, dono da loja, era amigo de Vô Manoel desde que eram crianças e mostrou grande prazer em mostrar e explicar tudo para o curioso menino. Depois, os dois velhos se afastaram para conversar, relembrando coisas do passado, e o menino ficou à vontade para explorar as maravilhas da loja.

Chamou-lhe a atenção um imenso relógio de chão, de madeira escura, um pêndulo redondo e dourado oscilando pra lá e pra cá, os números romanos indicando dois minutos para as três no mostrador prateado. Percebeu que havia uma pequena porta na parte lateral do móvel. Abriu-a e entrou. Lá dentro, tudo estava muito escuro, a não ser por uma luzinha verde que piscava. Acostumado com vídeo games, levou o dedinho em direção à luz e pressionou-a de leve. Imediatamente um painel se acendeu, inexplicável, numa peça tão antiga e desprovida de eletricidade. Era uma série de quadrículos luminosos preenchidos com zeros de cor vermelha. Ele passou a apertar os quadrículos aleatoriamente bem no instante em que o relógio marcava três horas com badaladas fortes e metálicas. Um zumbido estridente e constante soava do painel e os zeros dos quadrículos começaram rapidamente a se transformarem em números. O móvel tremia e sacudia sem parar. O menino também tremia, sem saber o que estava acontecendo. Finalmente, o ruído cessou e o tremor parou. Os números no painel eram agora 1 9 5 4 0 6 2 7 1 4 3 5 1 7, um algarismo verde em cada quadrículo.

É claro, Marquinhos não tinha a menor ideia do que esses números significavam. Talvez um jogo qualquer que ele ainda não conhecia. Todavia, estava satisfeito. Era melhor chamar o Vô Manoel para irem embora. Abriu a portinhola e notou que a loja estava muito diferente, não sabia bem o quê. Um velho dormitava no balcão da loja e o menino então perguntou pelo Sr. Abdias. “Abdias” – respondeu o velho – “deve estar na rua a brincar com os outros moleques”. O menino pensou: “Hummm, esse velho deve estar caduco. Não acho que o Sr. Abdias, um homem tão sério, iria estar na rua brincando com moleques. Melhor eu ver se meu vô está aí na frente”. Quando ele abriu a porta para sair, quase caiu de costas, tamanho o susto: TUDO estava diferente: a rua era de terra, não havia calçadas, não havia carros, não havia postes nem fios, a única coisa que parecia familiar era o Jequitibá no meio do descampado na frente da loja. De repente ouviu perto do rio uma algazarra de moleques. Caminhou até lá e se aproximou dos meninos que jogavam bolinhas de gude na margem. Eles olharam desconfiado para o menino estranho, vestido de um modo estranho, calçando sapatos estranhos. Marquinhos perguntou a um dos moleques se tinha visto seu avô Manoel passar por ali. “Não vi não” – e em seguida chamou: “Ô Mané, cê viu algum velho por aqui?” “Vi não, Bidias. ” “Também não vi” – disse outro. “Tem velho nenhum por aqui não!”

Marquinhos ficou muito intrigado com tudo aquilo. O rio, em cuja margem eles brincavam, tinha água cristalina e limpa. A ponte tinha pilares de troncos e assoalho de vigas de madeira. Ele perguntou ao Mané: “Onde você mora, Mané?” Mané respondeu: “Logo ali, depois da ponte, naquela casa azul com claraboia no telhado. ” Marquinhos olhou ao longe e identificou imediatamente a casa onde o Vô Manoel morava. “Meu Vô Manoel mora naquela casa” – informou Marquinhos. “Ei? Quem mora naquela casa sou eu, com meu pai e minha mãe!” – zangou-se Mané. De repente, Marquinhos se deu conta do que tinha acontecido: tinha viajado no tempo, tinha voltado ao passado e Mané era seu avô com a mesma idade que ele. O relógio era uma máquina do tempo.

“Vem brincar com a gente” – convidou Mané. Vem nadar um pouco e depois vamos jogar bétia no descampado. Marquinhos pensava: “Nossa! Acho que estou brincando com meu avô menino”. Na hora de jogar bétia, Marquinhos fez par com Mané. A bolinha era pequena, de borracha vermelha e muito mole. Marquinhos disse: “Tenho uma bola melhor, vejam” – disse tirando uma bola amarela do bolso. Onde cê arranjou essa bola esquisita?” – perguntou Mané. “É uma bola de Tênis, olha que legal.” O jogo começou com Abdias e outro menino na posse dos tacos. Queriam jogar com a bolinha de costume, a vermelha. Marquinhos ou Mané corria para quebrar a casinha de gravetos o mais depressa que podiam. A dupla adversária já estava com quinze pontos quando, finalmente, Mané conseguiu quebrar a casinha antes de Bidias chegar ao buraco. Mané e Marquinhos preferiram a bola amarela. Na primeira tacada Mané acertou a bola em cheio e ela voou, atravessou todo o descampado e caiu do outro lado do rio. É claro que deu para cruzar os tacos vinte vezes, correndo de uma posição para outra e terminar a partida antes da bolinha voltar para o jogo.

Brincaram a tarde toda. Por volta das seis o pai de Abdias o chamou. O velho ia fechar a loja. Marquinhos ficou desesperado. Despediu-se de Mané com um forte abraço, correu para dentro da loja e, disfarçadamente, escondeu-se no interior do relógio. Percebeu que o barulho da loja cessara, não ouviu mais carroças na rua, nem zoeira dos moleques. E agora? Como voltar para o seu tempo? Ficou ali dentro matutando sobre o significado daqueles números. Concluiu que, pela idade de Mané, seu avô menino, os quatro primeiros algarismos podiam ser o ano em que a máquina do tempo parara. Ele era bom em matemática e logo percebeu que os demais números eram o mês, o dia, a hora, os minutos e os segundos. Aí lembrou-se. Era dia de seu aniversário. Três horas da tarde quando entrara no relógio. Acendeu o painel e, cuidadosamente, digitou 2 0 2 4 0 2 2 3 1 5 0 0 0 0. Apertou a tecla que parecia a de play dos aparelhos modernos. Logo o zumbido estridente soou. O móvel sacudiu por algum tempo. Depois tudo parou. Marquinhos, o coração batendo forte de expectativa, abriu a pequena porta e, que alívio! Escutou seu avô chamando: “Marquinhos, vamos embora, já passa das três e preciso tomar meu remédio”. Marquinhos apenas sorriu, tomou a mão do avô e saíram para a rua movimentada em direção ao rio. O Jequitibá-Rosa, imponente, ciente da história, balançava sua copa ao sabor do vento da tarde.

HFigueira
Enviado por HFigueira em 15/08/2024
Código do texto: T8129424
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