O PÁSSARO QUE NÃO QUERIA VOAR

O PÁSSARO QUE NÃO QUERIA VOAR

Bem no alto daquela árvore imensa, esplendorosa, cheia de folhas, podia-se ver vários ninhos de diversos tipos de passarinhos que ali faziam suas casas para não serem importunados por mãos nada delicadas que lhes pudesse tirar do aconchego e do sossego que tinham direito. Sabiam que se fossem apanhados, poderiam dizer adeus à liberdade, pois ficariam trancafiados numa prisão, muitas vezes pequeníssimas eu mal daria para abrirem as asas e se deliciarem com o maior dom que Deus lhes deu – voar. Um voo livre, cadenciado, cheio de vida e amor pela natureza, cantando e chilreando notas musicais que as pessoas encantam-se, por isso os querem de posse, para apresenta-los aos amigos e conhecidos, e até fazerem disputas, e assim se exibirem por terem uma vida dentro de uma gaiola. Muitas vezes nem comida, nem água são capazes de fornecerem aos pobres animaizinhos que ficam enclausurados ansiosos para voltarem aos seus lares, que é qualquer tronco ou galho de qualquer árvore. O importante para eles é que seja na natureza e estejam livres para voltarem a cantar.

Em um daqueles ninhos, encontravam-se três filhotinhos que estavam impacientes, por fome e por ansiedade para poderem chegar o momento de partirem para a liberdade dos ventos e do ar, naquele céu azul resplandecente, com o sol a tocar suas plumas e lhes dar mais calor, mais ânimo, mais vida e prazer para efetuarem proezas que ainda ficavam só a admirar, vendo os outros a realizar. As penas ainda nem cobriam todo o pequenino corpo, e o bico parecia maior do que eles próprios, mas a vontade de viver lhes enchia o peito e dava uma força enorme para tentarem alçarem o primeiro voo livre. Mas o medo, de não conseguirem dar conta e acabarem caindo, fazia-os desistir e se resignarem.

O primeiro criou coragem, arrepiou as pluminhas, arregaçou as asas até o mais alto que podia esticar e então, incentivado pelos irmãos que ali estavam criando coragem, na expectativa de ver o resultado do irmão corajoso, do irmão herói, deu um pulo e atirou-se devagar, calmo e titubeante, quase indo de encontro aos outros galhos. Suas asas farfalhavam vagarosamente, até que conseguiu, com um pouco de dificuldade, firmar-se nos céus e assim ficar a dar voltas e mais voltas pela árvore que ainda acalentava o sonho medroso de seus irmãos que permaneciam ansiosos dentro do ninho, admirando a imensa coragem do irmãos que chamava por eles executando acrobacias como se já fosse um expert em voos livres. Era a natureza cantando, era a natureza agindo bela como é.

Eles não sabiam cantar, mas piavam, e o mais corajoso, que conseguiu vencer o medo e sair para a vida, começou a piar como se estivesse chamando seus irmãos, até que um outro também se arrepiou todo e chegou, decididamente, à beira dos paus entrelaçados que faziam parte daquele ninho tão perfeito e seguro. Olhou para baixo – altura imensa -, titubeou por alguns instantes, mas o pássaro que voava chegou perto dele para lhe dar coragem, para lhe incentivar e com seu piado já se assemelhando a um canto, de alegria e inventivo para o outro, que num gesto de necessária loucura, fechou seus minúsculos e temerosos olhos e atirou-se num impulso de coragem e bravura, para os ares que muitos mistérios guardavam para serem desvendados por eles. Seu voo foi cambaleante, quase chegou ao chão, mas seu irmão ia na frente e ao lado cantando, incentivando e orientando para continuar e levantar mais seu voo. Com um bater de assas compassadas e de uma maneira que o fizesse subir e não descer. Assim, ele conseguiu superar mais uma dificuldade e voou livre. Estava pronto para o mundo e cheio de esperanças para a vida nova que começava. A curiosidade pelas descobertas os faziam dar piruetas e mais piruetas, que nem mesmo eles imaginavam pudessem ser capazes, em tão pouco tempo de liberdade, e assim adquirindo mais confiança em si próprio, voaram cada vez mais alto, até quase desaparecer dentro das nuvens. Os dois irradiavam felicidade pela liberdade alcançada.

Agora só faltava um, mas ele não tinha coragem, de nem mesmo ensaiar uma saída triunfal, tinha certeza que não conseguiria fazer o que os dois fizeram, e desta maneira, nem tentava nem mesmo erguer suas asinhas frágeis, e só em pensar nisso, um arrepio passava por entre suas plumas e o fazia arrepiar-se do tremendo medo de se estatelar lá em baixo de uma altura tão, tão, e fechou os olhinhos minúsculos para nem pensar.

Os outros dois o chamavam e o rodeavam, fazendo piruetas, na tentativa de motivá-lo, mas nada o animava, seu medo era maior que qualquer incentivo, aliás, era muuuuito maior.

Assim ficaram horas e horas na tentativa de tirar do irmãozinho o medo de sair daquele ninho e partir para as aventuras que a vida lhe proporcionará. O ninho que outrora fora quentinho e acolhedor e agora, nada mais representa para eles, já era passado e agora poderia pertencer a outro pássaro que se aproveita das construções para porem seus ovos, e também, para cobras que se apossam dos ninhos na espreita da chegada de algum pássaro desavisado e inocente que seria o alimento para ela. Assim é a cadeia alimentar. Esse era o temor deles com relação ao outro que não conseguia sair do ninho, poderia virar comida para outro animal, ou até mesmo ser forçado por outro pássaro maior que quer tomar conta daquele ninho. Mas nada disso o fazia ter coragem para voar.

A fome começava a tomar conta dele e a fraqueza invadindo, e sabia que seus pais não voltariam mais para aquele ninho, estariam em outras bandas, já haviam cumprido a missão, e não tinham mais compromisso algum com eles. Então, num impulso de extrema coragem, ergueu-se fracamente, mas com determinação, e dirigiu-se à beira do ninho, solitário e sem os irmãos, que, cansados, já procuravam outros lugares para desbravar e comida para se alimentarem. Olhou pra baixo e quis recuar, mas pensou que nada adiantava, pois o ninho já começava a esfriar e ele morreria se ali ficasse.

Pensando assim é que, fechando aqueles lindos olhinhos tristonhos e medrosos, pulou para qualquer lugar e para onde pudesse ir, para onde o vento o levasse. Pediu ajuda aos ventos para lhe dar impulso. Mas o vento não veio, e ninguém estava ali para lhe ensinar como deveria fazer para continuar suspenso, usando suas próprias asas, que foram feitas especialmente para esta finalidade. Nem o instinto o ajudou a se manter no ar, voando.

Caiu.

Foi direto ao chão, sem nem mesmo mover uma pena para livrá-lo daquela dolorosa queda que poderia lhe trazer prejuízos vitais.

Estarrachado no chão ficou, imóvel, por bastante tempo, pois todo o corpo doía, e as pernas estavam adormecidas. Tentava movimentá-las, mas não conseguia. Suas asas estavam doloridas, pareciam quebradas. Nem piar conseguia, pois estava num estado de choque tão grande, pensando que seria comido vivo por outro bicho que chegasse perto dele. Chorou como os pássaros sabem chorar: piando fininho, mansamente, nem desespero prolongado, sabendo que seria em vão o pedido de ajuda, ninguém o veria e nem o escutaria pois estava escondido em baixo de uma imensidão de folhas secas daquelas imensas árvores que o rodeavam, inclusive daquela majestosa árvore que um dia fora seu lar, seu aconchegante lar. Sentia o seu cheiro. Nada mais restava para ele. Tentou outra vez locomover-se, mexer suas asas, mas nenhuma resposta recebeu de seu débil corpo estirado naquele chão triste, úmido, coberto por folhas secas e esquecidas.

Seus olhos fecharam-se, e pensou que..., mas de repente alguma coisa o sacudiu. O medo invadiu seu corpo imaginando ser o seu fim, algum bicho o havia encontrado e logo seria comida dele. O medo instaurou-se por todo ele que fechou seus olhos e só aguardava o momento final, que não chegava nunca. Tentava abrir seus olhos mas não conseguia, algo os pendia para baixo e os forçava a ficar na completa escuridão. Porém sentia seu corpo ser tocado e retocado, tudo doía-lhe, mas o calor que sentia no toque lhe acalentava e dava um sabor gostoso de aconchego e vida. Movia-se, mas não era ele, algo movia-se junto com seu corpo. Não, não estava voando. Não, não estava caminhando nem deslizando sobre as folhas. As dores permaneciam, mas fracas e mais confortantes. Um sentimento de paz tomou conta dele fazendo-o chorar, mas de alegria, piando bem baixinho para mostrar que estava vivo.

Finalmente a luz.

Quando conseguiu abrir seus olhinhos luzidios e faceiros, pode constatar que estava sobre alguma coisa que não identificava, mas era gostoso, quentinho, aconchegante, e não causava dor alguma. Com essa sensação, conseguiu arrepiar suas penas vagarosamente. Ao seu redor estavam várias criaturas que pareciam serem gigantes de outro planeta – terra. Ele pertencia aos céus, ao ar, à natureza, e era novinho, por isso não reconhecia as pessoas que o rodeavam. Mas não sentia medo, muito pelo contrário, sentia-se protegido, sentia-se em paz.

Foi assim que teve o primeiro contato com uma vida humana, e foi assim que passou a gostar dos humanos, pois o ajudaram a se salvar e o trataram muito bem, fazendo-o curar-se, e voltar a ser um pássaro igual aos outros. Igual aos outros nunca poderia ser. Não sabia e nunca saberia voar. As pessoas que o acolheram e o trataram queriam lhe ensinar, mas ele negava-se, talvez por medo de ter que enfrentar um mundo desconhecido ou porque aquela vida estava confortável demais, tinha toda atenção, carinho e comida que precisava. Pra que voar? Se voasse poderia ser mandado embora, e não teria mais aquelas mãozinhas delicadas de uma linda menina e de um belo garotão esperto que o juntaram, que o trataram com todo esmero e carinho. Colocaram sua perna numa tala de palito de fósforo e puseram remédio em seus machucados, alimentaram-no e o trataram como se fosse alguém muito importante.

Mas quem era ele sem pai, sem mãe, sem seus irmãos; todos o abandonaram por ser medroso e agora era tratado como uma criatura especial. Realmente era especial, pensou, pois quem o salvou também eram criaturinhas especiais, pois eram crianças.

Sentia-se feliz. O carinho e a atenção era tanta que resolveu nunca mais tentar voar. Pra que voar, pra que conhecer os céus, para que ir a lugares diferentes, árvores diferentes, coisas novas, se ali tinha um lugar gostoso e acolhedor para dormir, comida farta sem precisar caçar, pescar ou colher, e principalmente tinha muito amor destas crianças incríveis que o levavam na gaiola para todos os lugares por onde iam. Não sentia-se prejudicado, aprisionado, por não estar em liberdade, pois sabia que mais cedo ou mais tarde o soltariam e saberiam que não voaria para longe, pois estava consciente de que seu lugar era junto daquelas crianças dóceis que também sentem falta de seus pais, assim como eu, que nunca estão juntos com elas. Eles salvaram sua vida e agora chegou a vez dele salvar a vida dessas adoráveis crianças. E para lhes dar mais alegria, começou a aprender alguns malabarismos, nos poleiros que colocaram na gaiola. A cada dia mais força e vontade tinha de cantar e emitir sons mais fortes e intensos para alegria delas que pulavam, gritavam de alegria ao vê-lo se esmerar nas apresentações.

O pássaro tornou-se tudo para as crianças e as crianças eram tudo para ele. Um forte vínculo de cumplicidade e amizade foi se formando entre eles e todos se correspondiam a cada demonstração desses sentimentos.

Certa vez, no quintal onde penduravam sua gaiola, no pé de uma goiabeira, viu aproximarem-se dois da sua espécie – era um sabiá laranjeira de peito amarelo - que o olharam e o reconheceram. Começaram a cantar e chilrear, pulando de um lado a outro, beliscando as frutas e chegando perto da gaiola que pensavam ser a prisão de seu irmão. Eram seus irmãos que continuavam juntos a voar de um lugar a outro, sem destino e sem direção, simplesmente a voar, sem vontade de fazer nada por ninguém e nem ninguém por eles, assim como eu tinha, mas eles não sabiam. Eram ariscos, por sempre escutarem que os humanos só os destroem e os querem aprisionados para seu próprio prazer, então fogem aparvalhados quando alguém se aproxima. Podia-se ver e sentir que eles o convidavam para partir junto, abriram a gaiola com seus bicos e assim ele saiu e ficou em liberdade, junto com seus queridos irmãos, que o deixaram sozinho e sem dar ajuda na hora que mais precisava. Mas era da natureza deles. Pulavam de um lado a outro, os três juntos, e o pensamento vinha na sua cabeça que deveria partir para o mundo do desconhecido e da fantasia, deveria juntar-se a seus irmãos e curtir a vida, aproveitar o que seria natural como pássaro que era.

As crianças chegaram, ele olhou para elas e percebeu o desespero em seus olhares, e nos gestos que faziam o viram solto, e ainda junto com outros iguais, mas eles conseguiam identificar quem era o Dourado, assim era o nome dele. Sentiu vontade de chorar e parou de pular e ficou a observar os dois amigos que o cuidavam tão bem, e viu, dos olhos da menina, rolarem grossas lágrimas de um choro que se tornava convulsivo, fazendo-a soluçar pela tristeza de perde-lo, pois sabia que ele voaria para bem longe dela, se juntaria com os iguais a ele. O menino também chorava, porém, mais comedido. A mãe estava acalentando e confortando, provavelmente dizendo palavras que já se sabe quais, que tudo isso não passava do que teria que ser, pois a natureza dele é estar livre, para voar e tudo o mais. Os adultos são assim, falam, falam, falam. E as crianças são assim, não entendem, não entendem, não entendem. Palavra alguma fazia a menina entender e aceitar a perda daquele pássaro tão especial que ela amava tanto.

Dourado voou da goiabeira, deixando seus irmãos, e pousou no joelho da menina, piando, cantando notas belíssimas, girando seu corpinho ágil, como se estivesse numa dança, demonstrando para eles todo o reconhecimento pelo que fizeram para ele. Beliscava delicadamente, as mãos dela que aproximavam-se dele, como se as tivesse beijando.

Dourado pulava do joelho da menina para o ombro do menino. As crianças gritavam felizes. Seus olhos eram só alegria. Não parava de picar suas mãos, ora de um, ora de outro, até que olhando para eles, ergueu suas asas, as bateu compassadamente e voou para a goiabeira onde permaneciam seus irmãos esperando uma resposta se ela voaria junto com eles ou ficaria enclausurado numa gaiola sem vida e sem liberdade.

Dourado falou para seus irmãos, por intermédio de cantos, gritos e outras formas, que eles tem de se comunicar, que não iria, que seu lugar era ao lado daquelas crianças que o amavam e lhe davam de tudo e agora, a partir daquele dia, até liberdade para voar, coisa que pensava jamais poderia aprender. Não sairia de junto deles, pois precisavam muito de sua companhia. E ainda lhes disse: onde estavam quando eu cai da árvore? Eles me acolheram, me cuidaram e me salvaram. Assim eles foram embora, cabisbaixos e envergonhados, fazendo piruetas, na tentativa de mostrar ao irmãos que optou em ficar com os humanos. Mas essa liberdade deles era perigosa pois os caçadores sempre estão ao encalço dos pássaros.

Ele ficou olhando para seus irmãos e lhes desejou muita sorte, pois eles não sabiam que não se vive só de aventuras, e sim de amor, compreensão e que sua gaiola não era uma prisão e sim seu lar, sua proteção. Estava feliz, pois presenteava-se com a felicidade que ocasionava para aquelas crianças que também o faziam feliz.

- Voar, pra que voar? Eu não quero voar!

E pensando assim, voou cheio de felicidade para junto das crianças, entrava e saía da gaiola mostrando para eles que agora poderiam deixa-lo solto porque jamais iria embora, ficaria com eles para o todo e sempre, vivendo como amigos, como melhores amigos na maior e total felicidade.

As crianças, gritavam, batiam palmas, se abraçavam, abraçavam sua mãe e seu pai que chegara e presenciou parte de toda aquela cena inacreditável, mas passível de acontecer quando o amor superar todas as coisas impossíveis.

Dourado vinha e pousava em suas mãos estendidas, fazia malabarismos na frente deles e assim ficaram por um longo tempo e ficariam a cada dia.

(estória escrita em 24/05/91, baseada numa estória contada para meus filhos que na época tinham 9 anos o menino e 6 a menina, a pedido dela para dormirem, uns dois dias antes)