Faltou pouco
Sou otimista e cheio de vida, mas isto não me impede de receber a visita da tristeza de vez em quando. Mais triste ainda é saber que não é na minha espécie, nem na convivência entre os meus que isto acontece. Nós, coelhos, somos uma raça alegre e divertida; fazemos a felicidade da criançada. Elas contribuem para a nossa liberdade ao baterem o pé de zanga e de protesto enquanto não nos veem libertos das grades de um mercado de animais de onde, por certo, terminaríamos dentro de uma panela. É por isso que tenciono relatar aqui a minha história.
O campo é, para mim, o local mais aprazível que o criador colocou sobre a face da terra. Posso ali me esbaldar de contentamento e cometer minhas travessuras sem ser constantemente vigiado e sem correr o risco de ser apanhado por algum esperto maior do que eu porque, se em tamanho eu perco, na corrida ainda não encontrei competidor à altura.
Fico longe dos caçadores. Prefiro a vastidão dos terrenos abertos e das plantações de cenoura, porque assim não me deixo surpreender. As florestas cheias de árvores são um verdadeiro perigo para mim e para minha família. No entanto, não consigo resistir a um passeio por lá de vez em quando; encantam-me as formas de vida que aquele cenário oferece. Ali não consigo exercer livremente o meu gosto pela corrida. É uma vegetação por demais intrincada e o risco de levar um tiro me apavora. Mesmo depois do que aconteceu ainda me embrenho na mata, mas nunca só e jamais pelos lados do rio.
Como foram difíceis aqueles dias de cativeiro! Eu, que conhecia todos os segredos da vida campestre, acostumado que era a vencer enormes distâncias, vi-me confinado ao espaço limitado de um cubículo. A casta dos homens a quem me refiro é aquela interessada na procriação da nossa espécie. Como nos multiplicamos com rapidez e facilidade, somos mais valiosos vivos do que mortos. Mas nosso destino acabará sendo o mesmo: assados em uma bandeja ou ensopados dentro de uma panela. Na intenção de salvar minha mãe que havia sido capturada e dava berros de agonia, corri para ela e acabei prisioneiro também na mesma armadilha; ao menos, vivos estávamos.
Alçados por uma corda, ganhamos altura, vendo distanciarem-se de nós o chão, as folhas rasteiras em decomposição e, já distinguindo por sobre as copas das árvores, na beira do rio, a caminhonete; a carroceria voltada em nossa direção e suas portas escancaradas a nossa espera. Outras vítimas, coelhos-do-mato como nós, já lá se encontravam, tristes, privados de sua liberdade, com a curta e grossa cauda cinzenta entre as pernas. Encolhidinho e todo tremente, no fundo da armadilha, eu era consolado por minha mãe que se fazia forte para não me apavorar ainda mais.
- O que será de nós, mamãe?
- Não sei meu amor. Vão nos vender para algum mercado ou, quem sabe, acabaremos num desses criadouros que existem nas grandes fazendas.
Já dentro do carro, fomos jogados para o engradado, para a companhia de outros amiguinhos, sem sorte como nós. Partimos aos solavancos, perdendo nosso equilíbrio; eu divisei, por uma fresta da porta, um pedaço da mata, meu lar querido. O lanho no peito foi forte e indescritível. Tive tempo de ver meu irmão saindo de uma trilha em disparada e depois, parado, estarrecido e sem ação, ficar observando enquanto nos afastávamos. Ainda por umas dezenas de metros tentou nos acompanhar, mas viu que isto não seria possível. Testemunhei seu esforço, ora saltando sobre um tronco caído, ora correndo entre árvores, em ziguezague. Mas desistiu, finalmente e a última imagem que me restou dele naquele dia foi sua figura ofegante, sentado sobre as duas patinhas, com a cauda abanando, como num gesto de despedida, até desaparecer de vez.
Dentro daquele apertado espaço da armação de madeira o clima era de desolação e de dor. Já sabíamos do nosso destino. Foram muitos os coleguinhas antes de nós que, uma vez pegos não mais retornaram; não mais deles tivemos notícias. Se algum escapou, o que é bem possível, não conseguiu encontrar o caminho de volta para sua família. É bem provável que, ao evadir-se encontrou um novo campo ou uma nova floresta e tenha formado uma nova família. Isto para nós é regra de ouro; a solidão nos sufoca e nos deprime.
O que não consigo entender é esse gosto estranho do animal homem por nossa carne. Comer carne já é um comportamento abjeto. Comer, então, carne de coelho é algo que beira as raias da esquisitice. Quão deliciosos são os frutos do campo e da floresta! E olha que não são poucos. Quando estou numa horta me farto a valer, não há felicidade maior. Não sei dos outros animais, mas vejo o boi em meio a um prado, diante de todo aquele banquete; e como isto o deixa forte e orgulhoso! Um rebanho de cabras se alimentando. Meus amigos da floresta, o esquilo, o papagaio, os passarinhos que vêm comer os frutos das árvores. Penso em quanto o viver natural traz saúde e paz sem ter que sacrificar outras vidas. Estou certo de que o criador não deve andar nada contente com esta mortandade covarde de animais indefesos.
O cenário da fazenda para onde fomos levados era mesmo aquele que já imagináramos. Um local para a criação, reprodução e despacho de coelhos para o mercado consumidor. Pelo mesmo portão de madeira que se abriu para os lados ao nos aproximarmos estava prestes a passar um caminhão e seus engradados enormes repletos dos meus irmãozinhos de espécie. Eles se agarravam às grades e esticavam seus pescocinhos como a quererem, num esforço inútil, entortá-los para se escaparem dali. A grulhada chegava aos meus ouvidos como um apelo desesperado.
Passamos para trás da casa e eu testemunhei a grandiosidade do empreendimento. Eles eram especialistas na minha raça de coelhos-do-mato; eram fileiras e mais fileiras de coelheiras na área imensa do galpão. Do lado das criadeiras vieram dois funcionários dentro de seus macacões azuis escuros. Vi, quando passaram por nós para frente do carro, estampado em grandes letras nas suas costas, o nome da empresa, para mim, conhecida pelas histórias narradas pelos meus antepassados.
- Façam a separação – ordenou o encarregado.
As fêmeas que vieram conosco, mamãe entre elas, foram para aquele lado. Não preciso narrar a dor da nossa despedida. Nesse momento surge, galpão adentro, uma menininha. Ela core na direção do encarregado no instante em que ele bate a porta do veículo e se dirige para onde estamos. Pelas feições e pelo tom aloirado dos cabelos parece o pai da pequena.
- Papai! Papai! Hoje é o dia de o senhor cumprir a sua promessa; eu quero o meu coelhinho. – Ele a ergue no colo e diz ao beijá-la:
- Minha promessa é uma dívida, meu amor. Se papai prometeu você vai ter o seu coelhinho. Aí tem, escolha o seu – concluiu, colocando-a de frente para o nosso engradado.
Eu estava ali na frente, penalizado, vendo mamãe afastando-se de mim para o fundo escuro daquele recinto lúgubre quando duas mãozinhas agarram-me pelas patas e eu me deixo levar para o colo perfumado da criancinha.
Se escapei da morte na faca morri pela saudade de minha mãe querida. Dar-me-á, com certeza, um bocado de irmãozinhos. Quem sabe algum dia não venha parar onde estou? Consegui fugir depois de algum tempo. Minha liberdade foi limitada. Corria um pouco. E acabei aproveitando para escapar. Não queria o risco de virar almoço a qualquer hora. O importante é que fiz um pouco da felicidade de uma linda menina loira.