A MENINA E A JABUTI
Era uma vez na cidade de Laranjal, bem no interiorzinho no Paraná, uma menina que gostava de tudo quanto era bicho: em sua casa havia um papagaio, um macaco-prego e a jabuti, que era o seu bichinho favorito e se chamava Isolda de Oliveira Ano-Novo. Isolda porque no jornal que a envolvia quando chegou estava estampado o nome Isolda, talvez de uma peça nunca vista; de Oliveira, pelo nome da família; e Ano-Novo porque a ganhou de presente na virada do ano.
Apesar de amar seus bichinhos, a menina entediava-se rápido com o papagaio tagarela e mais ainda com o macaco-prego, por ser muito traquina. Seus momentos mais felizes eram com Isolda de Oliveira Ano-Novo: um animal sem pressa de viver que não se entediava com nada - uma vez que era o tédio em forma de bicho - e também não a deixava entediada, já que a menina, por sua vez, era apática por natureza. E assim ficavam as duas: a menina deitada e Isolda reclusa em seu casco, paradas, sentindo a brisa às costas e cascos, observando o chacoalhar das flores e das folhas das árvores.
Na verdade, toda essa apatia da menina começou quando seu pai, o Seu Ribeiro, pescador de profissão, não aguentando a pobreza e a vida simples do campo, há três anos fugiu de casa, abandonando mulher e filha; dizem que um dia saiu para pescar em sua canoa e nunca mais voltou. Nunca se soube se realmente fugiu ou se desapareceu em alguma margem do rio. O que se sabe é que, desde então, a menina pareceu ter adquirido uma curiosa fraqueza do corpo e da alma. Passou a andar sempre a passos lentos, a viver deitada na relva a olhar as estrelas ou a atribuir animais às formas das nuvens; brincadeiras que só de quando em quando a faziam abrir um leve sorriso. A menina parecia mesmo era uma alma penada, sem pena, sem nada.
Num certo dia, a menina foi ao encontro de Isolda que para seu espanto não se movia - o que não era nenhuma grande novidade – mas, passaram-se dias sem que ela comesse uma única folha, sem que colocasse a cabeça fora da concha, sem que mexesse um único músculo sequer. Ao que tudo indicava Isolda não estava bem. Nos primeiros dias, a menina olhava a jabuti sem parar, buscando perceber algum movimento que denunciasse sua sonolenta e preguiçosa existência. Aos poucos acabou desistindo... Colocou-a numa caixa, que enfeitou toda, com frutas e flores, para que seu bichinho pudesse viver ou, neste caso, morrer em paz. Mas, numa manhã, passando pela cozinha a menina avistou, de rabo de olho, a caixa, que agora estava vazia. Isolda, ao que tudo indicava, havia desaparecido, não dentro do seu próprio casco como era de costume, mas com casco e tudo.
E dias difíceis estavam por vir: as vendas de pinhão e frutas estavam cada vez mais escassas, e a comida já não alimentava a menina, e tampouco sua mãe que, cansada da própria existência, mal se mantinha em pé. Foram meses de fome sem a companhia paciente e tranquila da jabuti. Até mesmo os bichos que comiam somente frutas e folhas começaram a minguar de fome.
Passado um ano inteiro, num dia não tão belo assim, o vizinho de Dona Maria, mãe da menina, resolveu ajudá-la com o teimoso matagal, que já invadira parte da casa, destruíra um bom pedaço da cerca e parecia agora o lugar ideal para todo o tipo de bicho peçonhento, bichos esses que a menina não gostava nem um pouco. Após muito trabalho, dele e de seus quatro filhos, eis que Isolda de Oliveira Ano-Novo, que estava o tempo todo escondida na mata, reaparece à porta da casa de Dona Maria, cuja magreza acentuara-se em pouquíssimo tempo. Ao ver a jabuti, Dona Maria deu um sorriso ao mesmo tempo feliz e cansado, irônico e voraz.
De volta da escola, a menina ouvira da mãe, com um olhar esfomeado, que Isolda regressara. Feliz e aliviada, entrou rapidamente à sua procura, mas, para a sua surpresa, não a encontrou. Cansada de procurar, lançou um olhar curioso à mãe que agora carregava uma expressão ambígua de surpresa e abatimento, como se acabasse de cair em si do que fizera.
Foi então que Dona Maria desviou o olhar lentamente, com uma tristeza inumana, ao fogão a lenha, que exalava um aroma delicioso de ensopado, irreconhecível até então. Sem entender nada, a menina passou eternos segundos contemplando a panela sem saber o que pensar. Somente quando as lágrimas naturalmente começaram a cair é que entendeu o que havia no ensopado. Ignorando a fome e tudo que lhe pudesse segurar ali, saiu correndo em disparada mata adentro, mata afora, sem direção. Vizinhos afirmam que ela correu durante horas e foi encontrada na beira do rio, que parecia avolumar-se devido ao seu choro. Dona Maria, por sua vez, triste como sempre e morta de fome, sentou-se à mesa com um prato, um punhado de farinha e uma colher, e saboreou o ensopado com o único tempero que possuía: o sal de suas próprias lágrimas.