Era uma vez uma menina lindinha, de olhos redondos e da cor de uma jabuticaba, cabelos cacheados, pele negra igual a noite e laço vermelho de fita no cabelo. Gostava de andar cantarolando para demonstrar que era feliz, afinal a gente tem que mostrar pra todo o mundo que é feliz mesmo sem ser, é o mundo da tecnologia e das redes sociais que nos leva a isso. Nesse mundo, não tem ninguém triste e a menina mesmo sem gostar do mundo das redes sociais abria um sorriso bem grande para quem via na rua cumprimentando a todos com um "bom dia", "boa tarde" ou "boa noite". Na verdade, havia uma ponta de tristeza dentro de si que ela não sabia de onde vinha. Talvez do leste, do oeste, do sul ou do norte... não tinha a certeza, pois não era bem orientada nos pontos cardeais.
Pois bem, a menina certo dia foi às compras em um shopping center gigante do seu bairro. Tinha lojas de tudo o que pudesse imaginar. Era tão grande, mas tão grande, tão grande mesmo que ela precisou de um mapa para andar dentro dele e foi dado pela recepcionista do lugar. A menina agradeceu bastante, pois não conhecia nada daqueles corredores que saíam em outros e mais outros e depois outros e mais outros e o shopping ficava parecendo um labirinto que nunca chegava ao seu fim.
Entrou em uma loja, viu as roupas, provou, olhou-se no espelho do provador, gostou de umas e de outras não. Fez isso em várias lojas. Teve até um vendedor que se aborreceu com ela, pois depois de perder 1 hora e 45 minutos com aquela menina provando todas as roupas que via nas vitrines ela ainda disse que quando passasse de volta compraria uma blusinha
- Na volta eu compro!, disse a menina piscando o olho direito para ele saindo correndo da loja.
Aquele passar de volta, o vendedor bem sabia que seria nunca mais passar ali. Todo o mundo dizia aquilo quando não tinha a certeza do que queria comprar ou quando estava sem dinheiro mesmo. Ele só perdeu o seu tempo deixando de atender outras clientes que queriam de verdade comprar e a menina parecia querer brincar de comprar.
Finalmente, a menina chegou em uma loja com roupas bonitas. Tinha blusinhas estampadas com bichinhos, sapatos de cor rosa, vermelhos e brancos, macacões de tecido jeans, casacos para o frio e muitas outras roupas que ela vestiu, provou e se achou linda no espelho do provador. Pegou aquele monte de roupas nas mãos e voltou-se para a vendedora que estava bem sorridente por fazer uma venda maravilhosa àquela menina incrível, afinal comprou tudo numa loja só. A vendedora dobrou as roupinhas e colocou-as numa caixa branca. Levou a menina para o caixa da loja
- Vai pagar parcelado em quantas vezes, menina?
- Eu vou pagar em espécie, moça.
- Em espécie? De onde você tirou tanto dinheiro?
- Das minhas economias, moça! Criança também economiza!
- Mas, você pode pagar com o cartão de crédito da sua mamãe. Onde está ela?
- Estou sozinha! Sou uma pessoa responsável! Quero pagar as minhas compras!, gritou a menina chorando, pois ficava nervosa de uma hora para outra.
- Calma, menina! Eu apenas perguntei pela sua mãe. O valor das suas compras é de 155.000,00. Tem esse dinheiro todo aí?
- Tenho, sim! Tenho muito dinheiro! Quero um desconto, moça!
- Desconto de quê? Não viu a placa na loja quando entrou?
- Que placa?
- A placa que diz que já estamos em liquidação, ou seja, tudo pela metade do preço.
- Moça, todo o mundo que paga em espécie tem desconto.
- Aqui não! Eu não posso lhe dar um desconto porque como lhe disse já estamos em liquidação. Se quiser é assim se não passar bem!
- Pois passe bem você também! Quem precisa de mim é você! Eu não preciso de você para nada! Adeus!
E lá se foi a menina saindo da loja toda nervosa, chorando e tristonha porque não comprara as roupas que tanto gostou. A vendedora também ficou triste, mas explicou para ela que era verdade. Não podiam dar desconto, pois já estavam em liquidação e tudo saía pela metade do preço. A vendedora bem que tentou convencer a menina a voltar e pagar as suas compras
- Você pode trazer a sua mãe aqui e usar o cartão de crédito dela!
- Não! A minha mãe é uma mulher muito ocupada para perder tempo em shopping centers, além do mais eu tenho dinheiro em espécie. Aqui está, a menina mostrou uma mochila cheia de cédulas de 200,00.
- Menina, não saia mostrando esse dinheiro todo por aí. É um perigo andar com tanto dinheiro em espécie desse jeito.
- Quem vai roubar uma menina chorona igual a mim?
- Se algum ladrão vir esse monte de dinheiro vai levar tudo! E ainda é capaz de lhe fazer algum mal. Volte para terminar as suas compras. Eu vou falar com a nossa gerente para ver o que ela pode fazer por você. Aguarde-me um pouco sentada aqui. Vou lhe trazer um copo com água. Assim você para de chorar.
A vendedora sentou a menina num banquinho e lhe deu um copo com água, conforme tinha prometido. Depois entrou numa salinha. Talvez fosse a sala da gerente. A menina quis ir embora porque tinha perdido a vontade de comprar. Não tinha mais graça comprar naquela loja da mulher do caixa chata e sem entender nada de crianças. Parecia até que não sabia fazer negócios. Quem já viu a pessoa ir pagar com dinheiro em espécie e não ter direito a um desconto sequer?
Depois de uns trinta minutos, apareceu a vendedora e uma senhora alta, cabelos longos e lisos, óculos também grandes e vermelhos iguais ao seu batom. A mulher não sorria e parecia muito séria. Olhou para a menina e foi logo perguntando
- Por que você não compra com PIX?
- Eu não gosto de PIX, moça! Eu tenho dinheiro comigo!
- Por que não traz a sua mãe para comprar parcelado em 36 vezes no cartão de crédito? Damos um acréscimo de 8% apenas.
- Acréscimo de 8%? Senhora, eu entendo de negócios.
- Dá pra perceber que entende mesmo. Está brigando por um desconto.
- Senhora, dinheiro em espécie é valioso! A senhora devia saber disso. Pouca gente tem dinheiro em espécie igual a mim.
- Tudo bem! Tudo bem! Você ganhou! Se comprar 300.000,00 eu lhe dou um desconto de 1,5%.
- Só isso, senhora? É pouco! Além do mais eu não preciso comprar todo esse valor. Eu já comprei o suficiente para mim.
- Só posso fazer esse negócio, menina. É pegar ou largar.
- Eu largo e vou embora daqui! Gente chata que não sabe vender nada! Adeus!
A menina levantou-se do banquinho e saiu correndo com a sua mochila nas costas. Correu tanto que desapareceu em meio a multidão que andava nos corredores do shopping. Corria pra lá e pra cá. Só queria nunca mais ver as mulheres daquela loja que não sabiam fazer negócios.
Finalmente, chegou à praça de alimentação e viu uma loja de sorvetes deliciosos. Adorava sorvetes e tinha dinheiro na sua mochila o suficiente para tomar quantos quisesse. E foi o que fez. Pediu um sorvete de morango, depois um de chocolate, um de ameixa, um de goiaba, um de abacaxi... foi pedindo sorvetes e ficando com o bucho cheio. De forma que gastou todo o seu dinheiro com os 358 sorvetes que tomou naquela tarde ensolarada de verão na sua cidade.
Com a barriga cheia e andando por acolá de tão pesada que estava se sentindo, a menina resolveu pedir um UBER MOTO para levá-la até em casa. O motoqueiro parecia um homem bonzinho e a sentou direitinho na moto, colocou o capacete nela e pediu para que segurasse com força na sua cintura
- Como a menina vai pagar a viagem?
- Com dinheiro, moço! Quero um desconto, viu?
- Nossa! Eu não posso dar desconto! Já está bem baratinha a viagem, menina!
- Pois pare a moto que eu vou descer agora mesmo!
- Uau! Por que essa malcriação?
- Porque todo o mundo que paga com dinheiro em espécie merece um desconto. Assim sempre me falou o meu papai.
- Você pode pagar com PIX ou cartão de crédito, se quiser. Eu só não posso lhe dar um desconto. Não ganho quase nada nesse serviço de UBER, menina.
- Você quem sabe. Se não quiser eu chamo outro motoqueiro.
- Mas todos vão dizer isso que estou lhe dizendo, menina! Pra gente é até mais seguro receber em PIX ou cartão de crédito do que ficar andando com dinheiro. O mundo está muito violento!
- Decida, moço. Não tenho tempo a perder.
O motoqueiro ficou a pensar nas palavras da menina. Sabia que ela tinha razão em pedir um desconto, porém a UBER já tinha calculado o valor da viagem dela e não poderia mudar. Só que ele olhou novamente para a menina e olhou de novo. Era uma menina esperta e valia a pena negociar com ela mesmo que saísse perdendo alguns trocados. O importante era fazer a freguesia e conquistar a cliente.
- Huuummmm! Muito bem! Eu lhe dou um desconto de 10%. O que acha?
- Está pouco! Mas está bom! Quero ir para casa!
- Não estou ganhando nem o dinheiro da gasolina da moto, menina.
- Deixe de ser pindaíba, moço! Eu conheço essa conversa fiada!
- Enquanto você me chama de Pindaíba eu a levo para casa com segurança. Logo, logo chegaremos!
O motoqueiro saiu pilotando a sua moto pelas ruas da cidade enquanto a menina pensava em como era difícil fazer negócios com dinheiro em espécie na sua cidade. Ninguém queria dar um desconto para ela. E olhe que dinheiro em espécie é difícil da gente ver no mercado depois desse tal de PIX. Chegou em casa bem e no cair da noite. Antes de entrar, olhou para o céu estrelado e abriu a sua mochila
- Deus, eu quero comprar uma estrela com dinheiro em espécie. O senhor me dar um desconto?
A menina tomou um susto, de repente, pois depois de dizer aquelas palavras começou uma chuva forte assim do nada e o céu ficou cheio de nuvens escuras. Achou que Deus também não gostava de dinheiro em espécie ou quem sabe até mesmo de dar descontos. Entrou em casa, correndo e foi para o seu quarto onde encontrou o seu gato Mingau que veio abraçá-la todo saudoso.