Era uma vez uma menina de rua. Andava por aí olhando para as coisas com os seus olhões redondos e negros iguais a noite. Gostava de lojas de roupas e ficava horas com os olhos pregados nas vitrines das lojas querendo comprar um vestido, uma saia, uma blusa, um cobertor, um par de luvas para enfrentar o frio que castigava de madrugada. Mas, não tinha dinheiro nem para comprar um pedaço de pão.
Era sofrida a sua vida. Levava carreiras de toda a gente de gravata e sapatos de saltos altos. Não podia entrar em certos lugares chiques porque pensavam que ela ia roubar ou perturbar a ordem. Só podiam pensar muitas coisas horríveis dela, pois andava com um vestido sujo e rasgado pela metade, faltando os dentes, cabelos arrepiados e com um saco preto cheio de perguntas que não ousava fazer a ninguém porque não havia ninguém para ouvi-la naquela cidade de tanta gente.
O povo de cidade grande que anda batendo uns nos outros pelas ruas não tem tempo para perder com crianças em situação de rua, cães ou gatos abandonados, ninhos caídos no chão ou flores murchas nos asfaltos. Essas pessoas só têm tempo para fabricarem peças e produzirem bastante para fazer a economia do país crescer. Como será que elas vivem dentro de casa? Será que se falam? Será que se olham no espelho? Será que se cuidam? Terão tempo para si? Perguntava a menina, intrigada, enquanto as pessoas a empurravam na estação de trem lotada.
Quando sentava-se para descansar no meio da tarde fria perto do rio fingia lavar roupas junto das lavadeiras que cantarolavam felizes. Ali, perto daquelas mulheres, a menina imaginava outro mundo. Ia para outro mundo. Sorria e esquecia de tudo que estava além da sua existência de criança abandonada. Lavava muitas roupas imaginárias que tirava do seu saco de perguntas. Lavava com pedaços de sabão em pedra que recebia das lavadeiras. Lavava o vestido vermelho da vitrine de ontem, a blusa amarela da vitrine de anteontem, a saia da vitrine da loja de hoje e esfregava com força e lavava e jogava água em cima da roupa que só ela via e mais ninguém. As lavadeiras ficavam olhando aquela menina esquisita e nada diziam. Cada criança no seu mundo imaginário e a nós adultos só cabe respeitá-las.
Depois da roupa lavada, a menina as colocava no varal para secá-las. Enquanto ia pendurando no varal improvisado pelas lavadeiras cada peça do seu vestuário imaginário, a menina jogava perguntas para o vento tiradas do seu saco de plástico preto
- Por que eu não tenho ninguém? Quando a minha solidão vai acabar? O que é saudade? Está perto de eu morrer de tristeza? Onde fica o céu? Quem é Deus? Como posso ser feliz?
Para colocar a roupa no varal, a menina precisava ficar nas pontas dos pés porque ele era alto e ela somente uma criança. Torcia o vestido que só existia na sua cabecinha e dizia para si mesma
- Um dia, tudo isso vai virar verdade. Basta eu acreditar porque quando a gente pensa muita numa coisa ela acontece.
Depois torcia as meias azuis e pensava na noite fria que logo chegaria. Ah, se aquelas meias fossem de verdades! Mas, na sua cabecinha fez delas as meias mais quentinhas e bonitas que já viu em toda a sua vida! E pensou em voz alta
- Quem sabe um dia alguém tricote um par de meias para mim! Quando a gente quer muito uma coisa acaba conquistando.
Chegou a vez de colocar no varal a blusa de algodão vermelha com um pássaro estampado na frente. Se fosse aquele pássaro ia morar no mar. Sim, no mar, pois lá cada peixinho tem lugar para dormir e comida para se alimentar além do mar ser cuidadoso. A menina ficou ali vendo o seu varal imaginário quase cheio já. Estava faltando espaço. Precisaria ocupar outro varal. Tinha tantas roupas e nem sabia daquilo. A melhor coisa que uma pessoa pode fazer é nunca reclamar da vida, pensou. Nem sabia que tinha tanta roupa daquele jeito e foi para o próximo varal que estava vazio.
No outro varal, pendurou seu lençol branco bem grande que dava para cobrir todo o seu corpo. Ficou ali olhando para o seu lençol imaginário que sempre desejou ganhar e sorriu não sabe se das suas bobagens ou do seu desejo porque é tão difícil ganhar coisas hoje em dia. As pessoas preferem doar para instituições carentes e nunca pensam nas crianças em situação de rua que tanto precisam de um lençol para se cobrirem quando cai a noite fria e vem a ventania forte.
Depois de colocar toda a sua roupa no varal, a menina sentou-se à grama e ficou cantarolando uma música que ela mesma inventou. A gente precisa saber inventar coisas quando estar sozinho no mundo para não sofrer tanto. É como se inventando coisas e pessoas a gente pudesse senti-las próximas de nós e assim nos sentirmos menos solitários.
O tempo foi passando e passando. O tempo sempre passa e com ele se vão as pessoas, os dias, as noites, os anos. Só fica o vazio existencial. Só ficou a menina ali no rio a olhar para o seu varal de roupas imaginário. Todas as lavadeiras se foram. Lá de longe, veio um menino peralta, desses que adoram uma confusão e jogou cocô de vaca no varal de roupas da menina sujando-as todas
- Por que você fez isso?
- Porque estou com raiva da vida e quero brigar com a primeira pessoa que encontrar.
- Você sujou toda a minha roupa!
- Eu sei! Eu sei! Brigue comigo! Estou tão sozinho!
A menina olhou bem para aquele menino que conseguiu ver o seu varal de roupas imaginárias, descalço, cabeludo, desdentado e de cabelos arrepiados iguais ao seu. Sim, ele parecia um menino em situação de rua, também.
- Por que está sozinho?
- Eu não sei! Faz muitos anos que vivo sozinho! Ser sozinho é uma coisa esquisita!
- Eu não posso brigar com você! Estava sozinha aqui e você chegou! Pode me fazer companhia?
- Companhia como? Eu não sei o que é isso!
- Apenas ficar do meu lado. Depois eu lavo a roupa novamente.
- Posso, sim! É tudo o que mais quero na vida! Ficar perto de alguém! Mas, espere! Eu sujei a sua roupa! Devo ajudar-lhe a lavar tudo de novo!
- A gente lava amanhã quando o sol voltar. Agora é hora de dormirmos.
A menina convidou o menino para sentar-se ao seu lado e ficaram olhando o Sol ir dormir. Ela ficou a olhar para o seu varal de roupas toda suja de cocô de vaca. Teria um trabalho enorme para lavar tudo de novo no dia seguinte, mas valeria a pena só por uma noite ter a companhia de alguém. Às vezes a gente se sacrifica por alguém. Ás vezes é melhor fazer um amigo que brigar por coisas sem valor. Um amigo a gente conquista, coisas a gente compra ou faz de conta que existem. Eu faço de conta e você?