O PICAPAU CARECA
- Olha que coisa estranha esse cara!, quá, quá, quá, onde já se viu um pica pau careca. Passa fora coisa feia, não dá nem para saber se ele é um pássaro ou um pinto pelado, quá, quá, quá, qua.
Assim era tratado por seus irmãos e amigos Bicão, o pica pau careca. Não se sabia por que ele nascera e crescera assim. Enquanto seus irmãos exibiam seus topetes vermelhos ele não possuía topete. Era careca e possuía apenas algumas peninhas logo acima do bico, que era maior que o dos outros, isso o deixava triste e fazia com que vivesse voando de galho em galho, embora preferisse mesmo caminhar pelo chão onde os insetos, e minhocas de que se alimentava eram mais suculentos tentando assim, também se esconder de sua turma. Para ele, entretanto, o deboche de todos não tinha muita importância. Ele não passava de um pica pau careca para os outros, mas bem lá no fundo ele achava até engraçada sua situação.
Nas horas em que se encontrava sozinho, para espantar as mágoas cantava baixinho, bem baixinho, pois tinha vergonha que ao outros o ouvissem e debochassem ainda mais, já que um pica pau que se preza não canta, apenas emite sons seguidos que mais parecem uma gargalhada de deboche. Ele não tinha culpa de ser um pica pau diferente, não pedira para nascer assim e no fundo de seu coração alguma coisa lhe dizia que aquela diferença dos outros talvez não fosse uma coisa tão ruim. Ele era maior, mais difícil de ser agarrado pelos gaviões. Sua cauda começava a crescer e ele às vezes sentia que podia abri-la e fazê-la tremer, coisa que os irmãos não conseguiam fazer com as suas pelo menos, não tanto.
Então não tinha que se preocupar com que os outros pensavam de sua aparência de pica pau careca e quando era o centro das risadas e deboche dos outros fingia não ouvir. Ia saindo de fininho e voava para um lugar sossegado.
Quanto mais passava o tempo mais ele ficava diferente dos outros e sua vontade de cantar para afastar a tristeza aumentava, bem como o tom do seu canto e ele passou também a perceber que tinha certa facilidade de imitar o canto dos outros e outros sons diferentes que a floresta produzia. Assim ele não se sentia tanto um pica pau careca, pois podia assumir, pelo menos no canto, qualquer identidade que quisesse.
Ele continuava crescendo e suas penas estavam adquirindo uma cor parda e já começavam a crescer também na cabeça, embora nem de longe parecesse um topete de pica pau, apenas as peninhas acima do bico cresceram mais um pouco.
Certo dia, depois de mais um sessão de deboche e gargalhadas, ele voou para a beira do lago a beber água e esquecer as humilhações, quando ouviu o canto de um outro pássaro que parecia um pedido de socorro.
Voou para um galho bem alto de onde pudesse ver o que estava acontecendo. Percebeu que dois filhotes de canário piavam assustados com a aproximação de um gavião e a mamãe canário desesperada pulava e piava tentando afastar o gavião que só não conseguia agarrar seus filhotes porque seu ninho estava muito embrenhado no meio dos galhos e folhas, mas certamente em uma das tentativas ele conseguiria.
Bicão pensou então em um som assustador que ouvira dias antes e que ele conseguira facilmente imitar. Então com todo seu pulmão reproduziu-o, que nada mais era que o piar agudo de uma águia, a quem o gavião teme e respeita. Foi o bastante para que o gavião desistisse do ataque e voasse para longe.
A mamãe canário, também assustada com aquele piado terrível preparou-se para enfrentar nova ameaça, porém não via nenhuma águia por perto que pudesse ter produzido aquele som, então Bicão assoviou para ela se mostrando e repetiu o som. Ela entendeu de imediato que ele salvara seus filhotes voou na direção dele, agradecida, deu lhe um abraço. Conversaram muito e ele contou-lhe que aprendera aquele som apenas ouvindo e que podia imitar muitos outros.
Contou-lhe que era um pica pau rejeitado pelos irmãos, por ser maior, gostar de andar no chão e não ter topete, apenas aquelas peninhas acima do bico e que sofria quando debochavam dele, mas não se deixava abater.
Sabia que tinha um destino diferente a cumprir, bastava que esperasse e as coisas se ajeitariam. Enquanto isso ele ia imitando todo mundo, o que também era uma forma de se vingar. Imitar os irmãos era muito fácil e ele o fazia com tanta perfeição que somente pelo canto em forma de risada ele era identificado como pica pau.
O tempo foi passando e Bicão, agora bem maior e com uma cauda enorme debochava dos sons do mundo com suas imitações e já nem se importava com o deboche dos irmãos, porém sempre que sentia vontade de abrir a cauda olhava a sua volta com medo que um de seus irmãos visse como ela crescera, embora fosse linda, e que sua fama de rabudo se espalhasse pela floresta porque então ele seria alem de um pica pau careca, um pica pau careca e rabudo, o que não seria nada bom.
Naquela manhã de verão, quando o sol rasgando as copas das árvores penetrava na floresta espalhando seus raios pelo chão coberto de folhas secas, onde minhocas e insetos habitavam e se escondiam na luta diária pela sobrevivência, Bicão em seu costumeiro passeio pelo chão a procura de alimento deparou com outro pássaro que parecia muito com ele próprio, porém era certamente mais velho e maior e que ao reconhecê-lo como da mesma espécie e macho como ele abriu completamente a cauda e começou a emitir sons de todos os tipos no que foi imediatamente imitado por Bicão e entendido como ofensa pelo outro, que já ia partir para a briga quando Bicão lhe disse:
- Espera aí, eu só te cumprimentei também, o que fiz de errado?
O outro replicou:
- Não seja imbecil, não sabe que somos concorrentes para conseguir uma namorada?
Bicão estranhou aquela conversa, é verdade que ele não tinha muito interesse em uma fêmea de pica pau, até pelo que sofrera com os irmãos, mas nunca pensou que houvesse uma namorada especial para ele, ou seja, ali se dava conta que talvez não fosse um pica pau. Desculpou-se com o outro sem explicar sua situação, mas ficou intrigado sobre o que acontecera com ele no nascimento. Recordava que sua mãe tratara a todos de maneira igual e que ele, sem dúvida nascera no mesmo ninho que os outros, o que poderia ter acontecido? – Perguntava-se.
A floresta onde viviam Bicão, sua família e seus amigos era uma floresta de árvores frondosas e há muito cobiçada pelos cruéis devastadores do local, que pretendiam derrubá-las para vender sua madeira que era muito valiosa.
Bicão, depois de uma boa refeição repousando em um galho ouviu um ruído estranho, algo parecido com o barulho de uma moto serra, que ele claro não sabia do que se tratava. Imediatamente começou a imitá-lo, e com tamanha perfeição que os homens que tentavam derrubar uma árvore próxima pararam imaginando que houvessem outros fazendo a mesma coisa, o que era ilegal para todos, já que a floresta estava em área de preservação. Bicão resolveu voar para onde vinha o estranho ruído quando ouviu um estrondo e viu quando uma enorme castanheira desabava sobre as outras árvores matando e desabrigando dezenas de pássaros e outros animais que ali viviam.
Aquilo o assustou muito, jamais tinha visto tamanha maldade e aquele ruído passou a representar para ele, destruição.
Muito assustado voou para o trecho da floresta onde habitavam seus amigos e parentes para avisa-lhes do ocorrido tinha a sensação que aquilo aconteceria também justo na área onde eles viviam e que em pouco tempo a floresta seria dizimada.
Quando chegou encontrou toda a turma bicando os troncos em busca de insetos, coisa que ele não sabia fazer, porque nunca o atraíra, já que seu instinto o levava a buscar seu alimento no solo. Quando o viram tão grande, e com aquela cauda enorme a gargalhada foi geral e as piadas começaram:
- Vejam quem esta aqui o pica pau careca! E agora com um rabo enorme quá, quá, quá.
Todos riam e não se mostravam dispostos a ouvi-lo e ele que tinha algo importante a dizer-lhes ficou desesperado e começou a imitar o barulho da moto serra. Fez-se silencio entre todos, eles sabiam que aquele barulho era prenúncio de tragédia.
Então ele pode falar:
- Pois é pessoal, esse é o barulho da coisa que os humanos usam para derrubar nossas árvores e destruir nossas vidas. Precisamos fazer algo.
Um de seus irmãos aproximou-se e olhando-o minuciosamente perguntou-lhe:
- Afinal que pássaro é você , pois agora está claro que você não é um pica pau como nós. Ninguém aqui conseguiria emitir um som como esse.
- Ainda não sei algo está errado comigo, mas agora que perceberam que não sou um pica pau, também quero lhes mostrar o que posso fazer com minha cauda.
E dizendo isso, abriu-a e mostrou-lhes a grande lira colorida que ela se transformava. Todos ficaram encantados e para impressioná-los ainda mais, ele tremia as asas também e imitava diversos sons aprendidos. O espanto foi tanto que por um momento eles esqueceram que o perigo estava muito próximo.
Bicão então parou com sua apresentação:
- Precisamos fazer algo para espantá-los daqui. Eu tenho um plano, mas vou precisar da colaboração de todos, todos os animais não só os pássaros, que se espalhem e contem aos outros o que pretendemos fazer quando eles aqui chegarem.
Naquele momento ele estava lembrando de um uns estalos rápidos, altos e muito seguidos, que embora não soubesse o que eram o assustaram muito quando os ouviu e podia imitá-los com perfeição.
- Escutem , quando ouvirem esses sons que vou soltar comecem a voar desesperadamente e os animais terrestres a correr como loucos em todas as direções. Tenho certeza que vamos assustar aos homens também e dizendo isso passou a imitar o barulho de uma metralhadora, que também ouvira durante uma batalha entre guerrilheiros e tão alto que a correria já ia começar naquele mesmo momento, mas ele pediu:
- Calma pessoal ainda não é hora, vamos primeiro localizar os homens maus, cercá-los em silencio, e quando eu der o sinal começamos a gritaria e correria , ok?
Todos balançaram a cabeça concordando ainda assustados.
Um pica pau fêmea que era certamente a sua mãe, orgulhosa ouvia tudo com atenção.
Chegou a hora, Bicão localizara os homens e suas moto serras que caminhavam por entre a mata na direção da área onde eles habitavam. Soltou um pio alto em forma de alerta, todos parados silenciaram. Ele então começou a disparar sua metralhadora de garganta, TRATATATATATATATA com uma força e uma perfeição tamanha, que os homens desesperados pensando se tratar da policia florestal e ainda mais assustados com a gritaria, revoada e correria dos animais saíram da mata correndo e largando tudo pelo caminho, o que os jacarés que também participavam da tropa de choque, trataram de empurrar para o lago onde afundaram todas as armas e apetrechos que eles carregavam.
Todos comemoravam a vitória cantando e pulando de alegria, Bicão recebeu abraço de todos e mil pedidos de desculpas por todo aquele tempo em que para eles ele não passara de um pica pau careca.
A felicidade era geral, somente no pensamento de Bicão morava um pouco de tristeza, afinal ele não era um pica pau, então que pássaro seria?
Sua mãe percebendo seu acanhamento aproximou-se dele e disse-lhe baixinho:
- Parabéns meu filho! Você é um herói.
Então Bicão não resistiu e perguntou-lhe:
- Mãe, eu sou mesmo seu filho? Não tenho nada parecido com meus irmãos nem com a senhora e meu pai, na verdade não sei quem eu sou.
A mãe respondeu-lhe:
- É verdade meu filho, eu apenas choquei o ovo de onde você nasceu. Ele caiu no meu ninho em uma noite de tempestade e eu resolvi colocá-lo sob mim até que sua mãe aparecesse, o tempo foi passando e ela não apareceu e assim você nasceu.
- Então nem a senhora sabe dizer quem sou ?
- Não meu filho, infelizmente não sei. Só sei que te amo igual a todos os outros e agora mais orgulhosa de seu talento e beleza seja que pássaro for o importante é que você nos encheu de orgulho e todos que antes não o consideravam irmão agora fazem questão de dizer que você é seu irmão.
Os dias se seguiram com os outros pedindo a ele que imitasse esse ou aquele animal, o que ele fazia com prazer, porém a solidão começou a incomodá-lo ele resolveu sair pela floresta em busca de si mesmo.
Estava pousado em um galho a beira de um pequeno igarapé, quando caminhando levemente e atenta ao solo buscando encontrar insetos ou minhocas, uma simpática fêmea muito parecida com ele nas cores , mas que não tinha cauda tão longa vinha se aproximando sem vê-lo. Seu coração começou a bater mais rápido e ele não resistindo aos encantos da doce criatura emitiu aquele piado próprio ao que ela imediatamente levantando a cabeça pode vê-lo.
A essa altura sua excitação era tanta que sua cauda se abrira e tremia muito sem que ele sentisse e se mostrava linda e brilhante sob um raio de sol, a ave ficou encantada:
- Oi, estou fazendo minha primeira refeição, que tal se a fizéssemos juntos?
Bicão não resistiu saltou do galho, e ainda mostrando sua cauda aberta aproximou-se dela e ouviu um elogio:
- Que linda sua cauda!
Pronto, ali talvez estivesse a resposta para a pergunta que ele sempre se fizera, “quem sou eu”?
Olhando para a garota, admirado, falou bem baixinho:
- Uau! Linda é você!
Começaram a conversar e ele contou sua história de pica pau careca, ela riu muito e lhe disse:
- Então você não sabe quem é você? Que pássaro você é?
- Não, não sei
E ela ainda risonha:
- NÓS SOMOS PÁSSAROS LIRA . O Criador assim nos fez para que, imitando os sons da vida, possamos mostrar a todos os seres que nem tudo é o que parece ser e assim como você consegue imitar os sons que quer, também pode se passar por qualquer um. Na verdade Ele quer nos chamar atenção não só para aparência física, mas também para a importância dos ouvidos, ou seja para que não nos deixemos levar sempre pelo que ouvimos porque pode não representar a verdade e a lira que você traz em sua cauda representa todas as notas musicais que os seres humanos conhecem e desconhecem porque na música reside grande parte da beleza da vida.
Bicão por fim sabia que espécie de pássaro era e agradecido ao Criador e a sua mãe adotiva seguiu feliz caminhando com sua namorada e imitando um som romântico que ouvira a beira do lago e que fora produzido por um indiozinho que alegre tocava sua flauta sentado em um tronco de árvore caída alguns dias antes.
Não é preciso dizer que daí surgiu um grande romance e que para variar casaram-se e foram felizes para sempre.
( Esclarecimento: O pássaro lira é originário das florestas da Austrália e é capaz de imitar qualquer som em tom alto, com impressionante fidelidade, e poderia perfeitamente viver adaptado a nossa floresta Amazônica. )