Operação Luzes da Justiça - Parte Final

No instante em que Biel se recostou no parapeito da varanda e olhou para baixo, o coração deu um salto e seus olhos se arregalaram. Lá embaixo, na área do estacionamento daquele Bloco, Igor e os outros dois, Hugo e Jairo, pisavam e chutavam a bicicleta de Bernardo, gargalhando alto a cada novo golpe desferido. Gabriel conseguiu ver nitidamente o guidão da bike entortado, e o selim já estava fora do seu lugar há muito tempo.

— Ei! Parem com isso!

Gabriel gritou o mais alto que pôde, mas a sua demonstração de raiva apenas incitou ainda mais as risadas zombeteiras de Igor e seus amigos. Entrando em desespero, Gabriel se afastou correndo da varanda em direção ao quarto de Bernardo. Porém, antes disso, conseguiu escutar lá de baixo a voz de Igor gritando para ele:

— Seu filho da puta chorão!

E as gargalhadas de escárnio ficaram ainda mais altas e cruéis.

A tensão e a ansiedade que se intensificavam rapidamente não permitiram que Biel digerisse o que tinha acabado de escutar. Mas aquelas palavras de algum modo pesaram sobre o garoto, que se viu movimentando-se um pouco mais devagar em direção ao quarto de Bernardo, embora soubesse que estava correndo com tudo. Empurrou a porta e entrou.

Derramou as palavras de uma vez só, mas foi claro e objetivo na mensagem. Bernardo e Samuel tomaram um susto com a entrada repentina e o falatório choroso de Gabriel. Logo entenderam o recado e se apressaram para sair do quarto.

Ao passar por Gabriel, Samú notou que o irmão tremia, e que uma lágrima diminuta rolava de seu olho direito. Não parou para falar com ele, nem se demorou na observação, mas aquilo o encheu de uma fúria repentina, e Samú saiu correndo em disparada para fora do apartamento, ultrapassando Bernardo e deixando tudo para trás.

Os dois garotos desceram os três lances de escada numa velocidade impressionante. Biel veio logo atrás, o mais veloz que suas pernas cambaleantes lhes permitiam correr. Viu Samú perder o equilíbrio no final do trajeto e quase cair, mas recuperando a estabilidade dos pés com habilidade.

Já na entrada do Bloco “C”, os três garotos pararam um momento e olharam ao redor, procurando Igor. Com muita calma, Bê proferiu o seguinte comando:

— Hora de executar o plano!

Foi o suficiente para a energia frenética de antes envolver o corpo dos três meninos.

Samuel saiu em busca de sua bicicleta. Bernardo o seguiu, tentando a certo custo acompanhar os pés ligeiros e Samuel. Ao encontrá-la, no exato lugar onde a deixara, viu que havia sido deixada intacta. Montou de uma vez, e sem esperar orientações, Bernardo subiu na garupa. Olharam para frente e avistaram Igor, correndo pela extensa área do condomínio com a bicicleta de Biel, e seus dois amigos em seu encalço, cada um em sua máquina.

Samuel iniciou a perseguição a Igor e seus amigos, pedalando com força e atingindo novamente uma velocidade incrível em pouco tempo.

Biel ficou parado no mesmo lugar, vendo o irmão se distanciar dele muito rápido, mas sem conseguir chegar perto de Igor. Então as últimas palavras que o menino gritou para ele ecoaram em sua mente, dessa vez parecendo mais claras e doloridas. Gabriel saiu de seu lugar de forma quase automática, deixando-se levar por uma onda nova de energia e loucura. O caminhar que iniciou logo se tornaram passos mais breves, mais breves, até que os pés quase não se demoravam mais no chão. Em pouco tempo, viu-se arfando e subitamente muito suado, mas estava diante da bicicleta do Lipe, no Bloco “B”.

Sem pensar, Biel montou na bicicleta do amigo e começou a pedalar.

Logo ele entrou na zona em que vira Samú e Bê correndo a todo vapor atrás de Igor. Mas agora ele não conseguia ver ninguém. Era uma área espaçosa e comprida, ladeada por vários apartamentos de quatro andares, de diversos Blocos. As mãos de Biel suavam pelo esforço que ele fazia para ganhar velocidade, mas também pelo temor que crescia em seu peito. Já estava mais escuro do que quando desceram, e apesar de cada bloco ter iluminação própria em suas áreas de estacionamento, ali onde ele estava, bem no centro de uma grande parte do condomínio, estava muito escuro.

Depois de algum tempo, Biel avistou à sua esquerda a pracinha do playground, mal iluminada mas ainda muito convidativa, e uma luz se acendeu em seus pensamentos. Ele se lembrou de todo o plano de Bernardo, e um sorriso contente e aliviado brotou de canto a canto de seu rosto.

Então ele sentiu uma superfície maleável pesar com força contra o seu rosto, e foi arremessado para trás. A bicicleta derrapou alguns metros para o lado e Gabriel caiu com tudo no chão de cimento, rolando algumas vezes até parar.

Os braços e os joelhos ficaram quentes e começaram a arder, e sua testa também. Mas a primeira coisa que ele notou era que seu rosto estava ensopado, e suas roupas também estavam molhadas. Biel pôs-se de pé com dificuldade e olhou melhor para o corpo. Os olhos estavam marejados e ele enxergou tudo embaçado, mas viu que os joelhos estavam brancos, e ele sabia bem o que vinha a seguir. Preferiu não olhar para os braços. Ao lado dele, no chão, um plástico azul estava rasgado em alguns pedaços de tamanhos diferentes. A arma que o acertara.

— Olha só, se não é o bebê chorão! — gritou Igor, fazendo os outros dois rirem em seguida. Estava entre Hugo e Jairo, os três parados na mesma posição: ainda sentados no selim das bicicletas, mas com os dois pés fora dos pedais, equilibrando seus corpos magricelas no chão. — O que ele merece? — os outros dois gritaram: bombaaaaa!, e de uma bolsa pendurada nos ombros de Jairo, tiraram vários balões d’água.

A ofensiva foi rápida, certeira e dolorosa. Balões d’água de todos os tamanhos atingiam Biel em todas as partes do seu corpo, da cabeça aos pés. Alguns errava o alvo e explodiam ao lado dele, e apenas o molhavam. As feridas nos braços e nas pernas ardiam toda vez que ele era atingido e quando a água se espalhava. Ele murmurava “ai, ai” baixinho, esperando o ataque terminar. Um balão grande acertou bem em sua testa, e ele gritou mais alto com a dor aguda que veio em seguida. Finalmente cedeu às lágrimas e se encolheu no chão, segurando a testa com as mãos. Mas sem chorar ou espernear, ele se manteve quieto. Só precisava aguentar mais um pouquinho.

De repente, o ataque teve fim. Lentamente, ele deixou as mãos caírem e levantou a cabeça. Um líquido quente descia devagar da testa dele, escorrendo lentamente pelo nariz; as mãos estavam úmidas, mas o líquido era quente e pegajoso, diferente da água que o fustigou durante aquele pequeno período que pareceu uma eternidade. Mas foi outra coisa que assustou o garoto.

Igor estava parado diante dele, enorme e amedrontador. Era poucos anos mais velho que ele e seus amigos, mas podia passar por um adolescente mais velho facilmente. O cabelo bagunçado e o sorriso de canto de boca davam a ele mais uma camada de vilania.

Então percebeu que Igor trazia na mão um objeto, e ficou assustado. Ele segurava uma pequena haste de madeira irregular que se bifurcava para as diagonais em hastes menores de onde saíam tiras de elástico. Viu Igor colocar uma forma retangular num pedaço de couro onde as tiras do elástico se encontravam. Então ele puxou o elástico pelo objeto que havia acomodado ali, o máximo que conseguiu tencionar, e ficou parado, encarando Gabriel com o estilingue apontado para a face do garoto.

O corpo todo de Gabriel tremeu. Ele quis sair correndo dali, mas não foi capaz nem ao menos de se levantar. Foi quando pensou em seu irmão mais velho. Samú era corajoso e valente, e estava sempre protegendo ele. Naquele dia, no futebol do massacre, Gabriel não foi atingido nenhuma vez porque Samú jogava o corpo contra o dos garotos mais velhos sempre que Biel era o alvo, e conseguia livrar o irmão de se machucar. O Bê também era corajoso, e nunca permitia ser deixado para trás, apesar de não ser o mais ágil, nem o mais forte. Então por que ele tinha que ser sempre o bebê chorão?

Gabriel sentiu as pernas obedecerem aos seus comandos e se colocou de pé. Os traços de seu rosto tomaram formas novas, que nada combinavam com as feições serenas do garoto doce e comportado que Biel sempre foi. O peito subia e descia pesadamente, e as lágrimas caíam sem cerimônia de seus olhos. Mas ele não chorava de dor ou de medo. Chorava de raiva. Muita raiva.

Gabriel encarou Igor nos olhos, ignorando a arma que tinha sua mira bem posicionada sobre a testa dele. Passaram alguns segundos se encarando fixamente. O ambiente estava silencioso e estranhamente calmo. A visão periférica de Biel foi fisgada então por um brilho fraco que piscava constantemente, vindo da direção do playground. Então ele se lembrou pela segunda vez do plano de Bernardo.

Era naquele momento que tudo daria certo.

Gabriel sorriu para Igor, o mesmo sorriso diabólico que o mais velho adorava exibir, e engolindo um punhado de ar de uma vez, ele gritou:

— AGORAAAAAAAAAA!

Então, de repente, luzes de lanternas de várias tonalidades e intensidades foram acesas ao redor de Biel e Igor, vindas de várias janelas de muitos andares. Igor recuou alguns passos mas as luzes o seguiram. A baladeira que segurava caiu no chão com um baque surdo. Davi, Heitor, Artur, Gigi, Téo e Tereza. Jú, Andrezinho, Airton e Duda. Biel também viu alguns pais e tios ao lado deles nas janelas, e eles com certeza não deviam estar nada contentes com aquilo. Todos estavam ali, e esperavam somente o comando certo para finalmente pegar no flagra o idiota do Igor. Nenhum deles veria, pois estavam um pouco distantes para isso, mas Biel teve o prazer de testemunhar uma bela careta de terror no rosto de Igor, e depois de surpresa quando os dois fiéis escudeiros dele deram meia-volta e fugiram depressa.

Biel sentiu uma mão tocar seu ombro e virou. Bernardo entregou a ele um objeto redondo e mole, que pesou em sua mão. Biel entendeu, e sem demora, virou com tudo para Igor, arremessando com força o bolão contra o rosto dele. Igor se assustou e o impacto o fez cair para trás, de bunda no chão. O ambiente foi tomado por fartas gargalhadas de todos os lados. Biel foi contagiado e começou a sorrir também. Percebeu que o irmão fazia um sinal de legal para ele, ainda rindo, e sentiu um alívio tão grande que os ombros caíram. Passou o dorso da mão pelos olhos. Ele estava bem, e tudo deu certo.

Igor foi levado pela mãe aos puxões de orelha, e os espectadores das janelas acompanharam sem piscar os olhos o vexame que ele passava, e do qual dificilmente se esqueceria.

Trinta e cinco anos depois, Gabriel rememorava lembranças desbotadas do passado ao procurar o álbum de fotos dos filhos quando bebês. Por alguma razão, aquele acontecimento específico veio com tudo enquanto passava as fotos de seus gêmeos e os via tão inocentes brincando naquelas imagens vibrantes, eternizadas no tempo. Era engraçado como tudo era vivido com tanta intensidade na infância, e como cada brincadeira, briga e gargalhada eram levadas a sério como questões de vida ou morte. Sentiu enorme gratidão por tudo o que viveu, e por quem havia se tornado.

Quando saiu do seu escritório carregando o álbum nas mãos, estava decidido a ligar para Samuel e convidá-lo a passar as festas de fim de ano com ele. Gabriel estava com saudade.

Galvino Moreno
Enviado por Galvino Moreno em 21/07/2022
Código do texto: T7564695
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