O monstro invisível

O MONSTRO INVISÍVEL

Rosália Cristina

No Planeta Feliz havia uma cidadezinha muito bonita, com casas de pedras e jardins que tinham flores durante o ano todo. As famílias viviam preparando quitutes deliciosos uns para os outros, passeando pela praça, ou ainda, indo ao pequeno comércio e ao campo, enquanto as crianças corriam pelas ruas brincando umas com as outras num infinito vai e vem de risos.

Havia anualmente a festa da colheita, onde todos se reuniam na praça e recebiam visitantes de lugares vizinhos para comprar suas hortaliças, flores e artesanatos. Os moradores passavam meses se preparando para esse evento, que durava três dias. Além do comércio, havia apresentações culturais, com danças, músicas e muitas, muitas histórias.

Depois dessa grande festa da colheita, uma notícia não tão boa começou a circular através das bocas dos mercadores viajantes: tinha-se a notícia de que na cidade vizinha um monstro invisível tomara conta da cidade e ninguém podia sair de suas casas. Dizia-se também ele já marcou sua presença naquela pequena localidade das casas de pedras. As famílias resolveram manter suas crianças em casa. Os homens e mulheres, que precisavam sair para trabalhar, saiam desconfiados como se em cada esquina um sopro de vento anunciasse a presença do tal monstro.

Contava-se que era um ser que não podia ser visto de imediato, pois era mortal para quem o via. Todos tinham que usar óculos protetores para impedir a temida visão. Começou-se a vender óculos de todas as cores: cores lisas, cores com bolinhas, cores com listras, cores em desenhos diversos. Mas nem sempre os óculos eram suficientes para proteger os moradores. O Monstro Invisível invadiu a cidadezinha e todos os moradores tiveram que ficar escondidos em suas casas, esperando talvez um herói chegar.

Os seres vivos de lá começaram a se encontrar escondidos. Como eram seres muito inteligentes, criaram portais mágicos, por onde passavam sem ser vistos e poderem assim conversar com os amigos e familiares, sem que o monstro pudesse perceber. Todas as casas tinham o portal. Deram a ele o nome de VIDA. Acessavam o Vida para as compras e vendas do comércio local, para decidir os cuidados com o plantio a fim de não prejudicar a colheita, para os atendimentos médicos simples, para as atividades escolares, até para aprender uma nova receita de bolo. Já não saiam de casa pela porta da frente. Os portais eram o maior meio de comunicação e de interação que já haviam criado, pois os levavam às salas virtuais secretas cujos códigos de acesso só eles sabiam.

A criatura invisível continuava vagando na rua, à procura dos moradores. Cruzava as esquinas com os ventos das tardes, parava na soleira das portas, esperando um desatento passar por ali. E se por acaso, realmente um desatento passasse, ele lhe agarrava pelo nariz e o levava ao hospital onde passaria dias tendo o pesadelo de estar perdido debaixo das águas do mar.

Apesar da constante presença do monstro à solta pelas ruas, os moradores buscam sorrir: levam suas lanternas, atravessam o portal e se encontram virtualmente. Atravessam as noites de calor, cantando e contando histórias de seus antepassados - recordar é preciso. Um misto de nostalgia e encantamento sempre os acompanhava em seus encontros virtuais.

Quando o galo canta, eles escrevem uma pequena anotação para começar o dia. É preciso apelar para as palavras! A cada dia escrevem suas histórias e isso monstro nenhum há de tirar deles!

Acontece que os moradores, há meses trancados em suas casas, começaram a ficar doentes de tristeza, um banzo sem fim alterava suas rotinas de confinamento. Doutora Valentina, a médica mais experiente da cidade, lhes receitou Consciencius, um remédio que ela mesma criou, usando óleos e essências de pétalas de lírios e de rosas, tão abundantes naquela cidade. Como efeito, o remédio dá a quem o usa, a certeza de que tudo vai passar.

Com o passar do tempo (ou dos tempos), os moradores daquele lugar resolveram fazer festas virtuais para se livrarem do banzo. Depois de muitas conversas, decidiram fazer um coral e cantar bem alto para assustar o monstro da rua. Depois de muitos ensaios, chegou o dia da apresentação do coral. Todos acessaram o dispositivo de acesso ao portal. Pareciam nervosos, mas dona Cantarolídia, amorosa como sempre, os encorajou para iniciar seus cantos. Foi inesquecível! As vozes ecoaram cidade afora, parecendo tocar nas montanhas próximas e voltarem mais melodiosas. O banzo passou e a vontade de renovar a vida tomou os corações de todos os habitantes. Nem parecia que havia um monstro por aquelas ruas! Ele parecia ter se enfraquecido com isso. Talvez ele não goste de felicidade.

Foi um breve enfraquecimento, mas foi suficiente para que as ondas dos gráficos que os cientistas divulgavam ficassem menores. Quem sabe um grande evento de contação de histórias o afastasse de vez!!!

Apesar do passar do tempo e da leve sensação de que tudo estava voltando à normalidade, os moradores foram surpreendidos e ficaram assustados, com as notícias que chegavam de que um novo monstro se aproximava da fronteira daquele lugar. As reuniões feitas, a partir do portal mágico, para treinar a contação de história que poderia afastá-lo, continuavam. Porque assim como a música o enfraqueceu um dia, as histórias contadas com certeza teriam mais forças para afastá-lo de vez. Afinal, sendo as histórias encontros mágicos de letras que transportam você para onde quiser, com certeza iriam transportar o tal monstro para bem longe. Assim pensavam!

O grande dia de contação de histórias chegou. A imaginação e o encantamento pairavam pela cidade. O ano acabou com o monstro realmente enfraquecido. As pessoas até começaram a criar confiança e pisavam nas soleiras das portas, ainda que timidamente, com os olhos a percorrer qualquer sinal de movimento.

Os dias passavam devagar como nuvens em dia de pouco vento. Com a constante saída dos moradores, o monstro invisível voltou a se fortalecer e devorou alguns habitantes que não acreditavam na existência dele e se aventuravam a passear pelas ruas. E enquanto ele andava à solta, os magos que moravam além dos portões da cidadezinha bolavam um plano para exterminar aquele ser que tanto mal andava fazendo. Com suas sabedorias, criaram porções mágicas que podiam fazê-lo desaparecer de vez!

As porções mágicas criadas pelos magos começaram a chegar a cada casa da pequena cidade. Os moradores mais velhos foram os primeiros a ser banhados com a porção. Todos concordaram que seus avós traziam a história viva daquela cidade e que mereciam ser os primeiros contemplados com a imunidade. Não mereciam viver assombrados por algo invisível.

Percebeu-se, pouco a pouco, que em quem a porção era colocada, o monstro não se aproximava. Em breve, a cidadezinha ficaria completamente livre dele, pois todas as pessoas haveriam de se banhar com a porção, afastando-o mais e mais.

E todos poderão se encontrar na praça e contar suas histórias, e se abraçar, e sorrir, e dar as mãos e dançar cirandas em roda, cantarolando alegrias. A cidade poderá vir a ser também o lugar onde crianças param e contemplam as vidas que por elas passam, as famílias podem querer trocar mais que quitutes entre elas, trocar sonhos, e que todos sempre desejem compartilhar o que têm independente do tempo ou da colheita.

Rosália Cristina
Enviado por Rosália Cristina em 15/03/2022
Código do texto: T7473229
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