DO IMAGINÁRIO AO REAL
Debruçado no braço da poltrona seguia viagem o pequeno Miguel, quando o cansaço tomava conta do seu corpo, apoiava-se na janela do ônibus, seu olhar tristonho se perdia em meio à paisagem desconhecida e fatiga. Seu pensamento percorria igual a velocidade daquele automóvel com tantas perguntas mudas, pois, temia as respostas; entre elas algumas se repetiam com freqüência: Para onde estou indo? – Como será este lugar? – Terei amigos por lá? - Quando será que voltarei?
Miguel era filho único e tinha apenas cinco anos quando seus pais decidiram buscar melhores condições de vida em São Paulo; estes vendo o pequeno Miguel crescer e tendo o desejo de lhe oferecer melhores oportunidades, deixaram sua terra natal, com o propósito de um dia retornarem, pois aqui ficara muito mais do que uma humilde casinha, um quintal com árvores a frutificar, naquele torrão amado ficava também seus familiares e amigos de quem com certeza muita saudade iriam sentir, motivos estes que fazia o peito dos três soluçar.
Após três cansativos dias de viagem, estacionaram em um galpão frio e sem cor. Miguel observou assustado, o vai e vem dos carros, buzinas, e um cheiro de pneu queimado no ar. Este primeiro contato com a cidade grande fez no seu rosto sereno uma lágrima tímida e contida deslizar, depois outras vieram seus olhos inundar. Seus pais, grandes protetores, dividiam o colo para o filho acalentar, seguravam firme sua mão e cochichavam frases de acalento, tentando a dor da saudade amenizar. Seu pai descrevia as belezas que Miguel ia conhecer: shoppings, cinema, parques, zoológicos... Tudo isto era novidade mas não fazia parte do encantamento do pequeno.
Miguel ouvia seu pai e percebia sua voz hora ou outra embargada e trêmula; sua mãe tinha a mão gelada e suspirava profundo a todo momento, algo lhe incomodava e, o pequeno Miguel no seu pensamento infantil só queria jogar pelada no campinho de areia com bola de meia, correr de cavalo com o vovô, comer a tapioca da vovó e jogar peteca nas cavas que faziam no terreiro.
Miguel sofria naquela casa pequena, no quintal solitário, passados alguns dias... Até que chegou a hora de ir para a nova escola, isto lhe animou um pouco. De mochila nova entrou no ônibus com sua mãe, o percurso durou mais de meia hora, isto, já lhe causou estranhamento e medo. Indagou sua mãe:
- A escola é tão longe assim mamãe? – Como vou fazer para voltar?
Sua mãe o acalmou dizendo:
- Calma filho! A partir de amanhã você irá de perua, o motorista lhe pega em casa e deixa na escola, na volta estarei sempre lhe esperando no portão de casa.
O estranhamento de Miguel foi maior ao adentrar aquele prédio enorme, com dezenas de crianças, até que gostou da estrutura física da escola, tinha playground, refeitório, quadra de futebol... Miguel foi acolhido pela diretora que lhe conduzido até a sala de aula. A professora lhe recepcionou muito bem e o apresentou a turma demonstrando alegria pela chegada do novo aluno.
Os primeiros dias foram difíceis para Miguel, ele até gostava das aulas, mas nos momentos de recreação se distanciava, ficava por muito tempo sozinho, de longe alguns professores observava que ele vivia a balbuciar baixinho como se conversasse com alguém. Indagando algumas vezes sobre o que falava, dizia Miguel com frases curtas: - Converso com um amigo. Era costume de Miguel pedir uma tarefa a mais a professora, quando esta lhe perguntava por que duas, dizia que tinha um amigo que não ia a escola e queria ajudar. Na cantina, Miguel costumava pedir duas colheres, dois copos e quando era questionado dizia prontamente: - É para um amigo.
Tantos outros fatos semelhantes haviam ocorrido. Na aula de artes a professora pediu para que desenhassem uma cena representando seu amigo da direita e da esquerda e os nomeassem. Miguel foi o último a entregar a tarefa logo ele que era tão ágil desta vez demorou muito, se aproximou da professora, entregou sua folha dobrada e saiu apreensivo. A professora observando sua arte viu que o nome do colega da esquerda era desconhecido, o que lhe preocupou bastante. No final da aula pediu para que os alunos saíssem um por um, nomeando-os, propositalmente deixou Miguel por último e antes que o saísse se aproximou da carteira do Miguel e lhe perguntou:
- Quem são mesmo os amigos que você desenhou Miguel?
Ele com a voz trêmula respondeu:
- Este é o Gustavo.
A professora argumentou:
- Sim, o Gustavo eu conheço. Mas quem é o Daniel que você desenhou aqui do lado esquerdo?
Ele mirou a porta da sala que estava aberta e já levantando para sair correndo falou:
- Este é um amigo só meu.
A professora ficou muito preocupada e comentou o caso na sala de professores, a coordenadora da escola pediu que todos o observassem atentamente para se acharem necessário tomar alguma providência.
Passado alguns dias outro fato chamou ainda mais a atenção. Durante o recreio a professora de Educação Física percebeu o Miguel sentado em uma das pontas da gangorra segurando firmemente na base de sustentação do brinquedo e com o queixo sobre o peito chorando profundamente. Ela o observou por algum tempo tentando descobrir o que acontecia se aproximou e perguntou carinhosamente o que estava acontecendo. O Miguel continuando o choro e entre soluços respondeu baixinho:
- Neste brinquedo não dar certo brincar com o Daniel. E continuou o choro...
A professora que já sabia do caso lembrou que Daniel era o nome do menino que ele havia desenhado na aula de artes. Ela procurou reverter à situação e disse:
- Miguel, o Daniel pesa menos que você, só por isso, não dar certo vocês brincarem sozinhos, mas eu tenho uma solução. A professora convidou três colegas que estavam próximos e colocou um do lado do Miguel e os outros dois no outro lado da gangorra e assim os quatro gangorrearam por algum tempo. Até que pela sua reação foi divertido.
Após este ocorrido a direção da escola chamou a família do Miguel para um diálogo. A mãe do Miguel relatou que fatos semelhantes ocorriam também na sua casa, como por exemplo: pedir dois cobertores na cama, dividir a pipoca em duas vasilhas, colocar dois pares de chinelo ao pé da cama... O psicopedagogo explicou as fases de criação e imaginação da criança, ressaltando que os “amigos imaginários” fazem parte do mundo infantil e que se aflora diferente em cada criança, necessitando apenas de um acompanhamento, de observação para que não se torne excessivo.
Aos poucos Miguel se enturmou com os colegas de classe, tornando-se uma criança além de estudiosa, mais alegre e feliz. E, se o Daniel existe, não sei. Mas para Miguel ele foi um amigão. Fantástica imaginação...