Vovozinha na calçada
 
Todas às tardes, depois do seu soninho ela sai puxando a cadeira até a calçada para ver as pessoas que vão e vêm e conversar com quem aparecer. Antes disso, ela já pede para deixarem pronta uma garrafa de café para quem quiser tomar.
Tem um século de idade e ainda lúcida fala da Segunda Grande Guerra Mundial onde o seu esposo morreu em batalha. Gosta de comer biscoito recheado, mas os filhos não permitem porque ela tem diabetes. Come escondida. É teimosa e peralta. Sobe na escada para mexer com o cachorro do vizinho.
Adora ouvir vozes de crianças e contar histórias para elas do tempo da Carochinha. Reclama porque não brincam mais de ciranda e só querem viver mexendo nos celulares. Odeia telefone. Odeia televisão, mas gosta de um radinho de pilha para ouvir o jogo do seu time predileto. Sim, vovó torce por um grande time brasileiro. Qual será o time, leitor?
Enquanto a vista foi boa costurou roupas para meninos e meninas, também bordou e fez punhos de redes. Educou dezessete filhos sozinha. Tem medo das guerras. Tem medo de morrer num hospital. Quer morrer em casa ao lado da sua família. Quer ser enterrada embaixo do seu abacateiro.
Os netinhos a visitam aos domingos. Antes fazia bolinhos de chuva para eles. Hoje, são eles quem trazem bolinhos para ela. Com cem anos de idade não se pode mais fazer muitas coisas, principalmente mexer no fogão.
Tem uma mocinha que veste branco que todos os dias vem aplicar injeção na sua barriga e ela sente cócegas. A mocinha apenas sorri e depois vai embora na promessa de que voltará no dia seguinte.
Na calçada, a vovozinha conversa com o homem do leite, o carteiro, a menina que empina pipa, o menino que brinca de biloca, a vizinha que lhe traz um pedaço de bolo de ovos.
Cumprimenta quem passa na rua. Os meninos jogam bola com cuidado para não bater nela. Há bem pouco tempo quando isso acontecia cortava as bolas, mas eles nem ligavam. 
Meio surda não escuta direito o que as pessoas falam. É preciso sempre repetir ou falar alto, quase gritar para ela. A mulher da cocada sempre que passa pergunta se ela quer comprar, mas sem ouvir direito, apenas a cumprimenta com um sorriso desdentado. Perdeu seu último dente no dia do aniversário dos seus noventa e três anos.
Outro dia entendeu a palavra "vendeu" por "morreu. E foi logo perguntando, curiosa
- Quem morreu, minha fia?
A vovozinha quando senta na calçada parece flor plantada em cimento. A coisa que mais gosta é de perfume da Avon.
Quando anoitece, puxa a cadeira pra dentro e vai dormir na sua rede, doida para sonhar com o bicho do dia seguinte e fazer uma apostinha.
Nunca passou a senha do seu cartão do banco para ninguém. Todos os meses é um deus nos acuda para ir sacar o dinheiro.
Na calçada da vovozinha, os namorados e jovens sentam-se para namorar e paquerar.
A rua fica sozinha quando ela vai dormir. 
Rosângela Trajano
Enviado por Rosângela Trajano em 06/08/2020
Reeditado em 06/08/2020
Código do texto: T7027887
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