O Reino do Torno do Ouro

EPISÓDIO V

O reino do torno do ouro

A fábula contada por meu pai.

Contava meu pai: – Era uma vez, um casal muito pobre que tinha como bem material, apenas uma égua e uma cadela. Às vezes não tinha nem o que comer. A mulher se encontrava na primeira gravidez e o marido preocupado em alimentá-la, foi ao rio pescar e pegou um grande peixe. Ao retirá-lo da água – nessa época os bichos conversavam com os humanos – ele pediu ao pescador: Por favor, não me mate. Deixe-me viver, pois, estou numa viagem com a missão de perpetuar a minha espécie. Eu desci da nascente deste rio, aonde eu nasci, fui até a sua foz e durante a viagem eu cresci e agora, adulto estou voltando. A minha missão é, no meu ponto de origem desovar para contribuir com a povoação do rio. Ninguém tem o direito de impedir esse processo natural criado por Deus.

Então o pescador respondeu: – Ô meu amigo, eu também estou aqui também com a missão de perpetuar a minha espécie que é mais importante que a sua, pois, o homem é o centro do universo e as outras vidas existem em sua função pois ele que é a imagem e semelhança de Deus que o deu domínio sobre a terra, os demais animais e tudo que no mundo existe. Portanto os peixes existem, para alimentar o homem. Alimentar-nos, é também missão sua. A minha esposa está grávida e não temos nada para comer e se ela não se alimentar perderá o neném, por isso é que, mesmo contra a minha vontade, eu não vou poder atender o seu pedido e soltá-lo.

Então o peixe resignado disse: – Se é assim, tudo bem, pode levar-me, mas, peço-lhe: divida-me em quize partes iguais e dê três pedaços para sua esposa, três pedaços para a égua, três para a cadela e enterre três pedaços no quintal, mas, cada pedaço em lugar distinto. O que sobrar, você, como qualquer pessoa pode comer.

Assim o pescador procedeu e a mulher deu à luz, a três meninos, a égua pariu três potrinhos, a cadela também pariu três cachorrinhos e aonde foram enterrados os pedaços nasceram, um pé de laranja, um pé de lima e um pé de limão.

Os meninos ganharam os nomes de, Joaquim da Morrona, José da Morrona e João da Morrona – Creio que os pais tinham o nome, de fulano ou fulana da Morrona. Não me lembro se perguntei isso ao meu pai. Mas, se perguntei, ele me contou. Com certeza!

Cada menino ficou com um filhote de cachorro e um potrinho e Joaquim ficou com o pé de laranja, por isso era uma pessoa doce, simpática, alegre e tratável. José ficou com o pé de lima, portanto parecia com a fruta: embora doce, era mais triste, um pouco sem graça e amargo. João ficou com o pé de limão, portanto era azedo, bravo, esperto e valente.

Diz à estória que certo dia, Joaquim e José partiram montados em seus cavalos e acompanhados por seus respectivos cães à procura de namoradas, pois queriam se casar. João mais arredio, não quis ir, pois acreditava no destino e o que estivesse reservado para ele seria dele, naturalmente. Portanto, ele esperaria ali, pois obrigatoriamente o que era seu, teria que vir a sua mão.

Ao partir, os dois jovens recomendaram a mãe: – Mamãe se o meu pé de laranja, se o meu pé de lima, murchar é porque estamos em dificuldades, peça ao João para ir ao nosso auxilio.

Depois de certa viagem, os dois irmãos chegaram a uma casa aonde morava, uma velhinha e três lindas jovens. Foram bem recebidos pela aparente, humilde e até então, inofensiva velhinha que os apresentou as três moças. Segundo ela, suas netas. As meninas se chamavam: Verdadeira, Juriti e Fogo-apagou.

As jovens que se encontravam na janela, obedeceram docilmente, sem questionar a ordem da avó, que as mandou se recolherem, e desapareceram imediatamente. Só então a “boa velhinha,” os convidou para desmontarem entrarem, mas, antes entregou a cada um, três longos fios de cabelo e se fingindo humildade e ingenuidade, pediu: – Por favor, meus queridos, coloquem um fio atrás da orelha de cada um de vocês e também sobre seus bichinhos, pois tenho medo deles.

Para não desagradar à velhinha, principalmente pelas netas, eles atenderam sua inocente superstição. Porém, ao que foi feito, ela proferiu uma estranha frase que eles não entenderam e os fios se transformaram em grossas correntes de ferro amarrando-os. A velhinha se transformou numa bruxa, que montada em uma vassoura, cantava e sorria sinistramente em volta deles dizendo que logo os dois seriam assados para alimentar uma legião de espíritos...

No dia seguinte, na casa dos jovens, quando a mãe foi regar o pomar notou que os pés de lima e laranja amanheceram murchos, então falou com João da Morrona: – Meu filho, vá em socorro dos seus irmãos, pois, eles estão correndo sérios riscos.

O rapaz decididamente montou o seu cavalo e acompanhado do cachorro, partiu em socorro dos irmãos. Quando chegou à casa da velhinha, ela veio ao seu encontro apresentando as netas que se encontravam na janela, mas ele ignorou as garotas e não aceitou os fios de cabelos, pois estava determinado a encontrar os irmãos e não estava disposto a perder tempo com coisas menos importantes, ou ignorância de velhinhas supersticiosas.

Como ele não tinha a doçura da laranja nem a calma da lima, mas, ao contrário, a acidez do limão, foi entrando casa adentro, mesmo sem ser convidado. A velha correu e pegou a sua espada em um canto da casa para duelar com o rapaz. Porém, ele também sacou da sua e, num duelo ferrenho que durou alguns, não poucos minutos, ele conseguiu a vencer a poderosa adversária. Com ela então dominada, ele pressionou a espada em seu pescoço e a obrigou a contar onde estavam os irmãos e os respectivos animais.

Depois de revelado o esconderijo, João aplicou-lhe um golpe no pescoço separando a cabeça do corpo. Naquele momento ela emitiu um horripilante grito de bruxa que deixava para sempre o bruxado. Nesse último ato de horror, a bruxa expirou deixando em liberdade as três moças que se transformaram em três pombas conforme seus nomes e voaram para pousar numa árvore em frente.

Quando João saiu de dentro da casa, elas lhe jogaram um lenço branquinho e disseram: – Adeus Guerreiro! Guarde este lenço para cicatrizar os ferimentos que por ventura vier a sofrer em suas guerrilhas. Se isso acontecer, basta esfregá-lo nas mãos e todas as suas dores se aliviarão, feridas cicatrizarão e problemas resolverão. Não nos esqueça, estaremos lhe esperando no Reino do Torno do Ouro! Não demore, vá nos buscar.

Ao dizer isso, as três pombas voaram em direção ao céu e ele ficou olhando-as, até desaparecerem na distância do infinito.

João da Morrona libertou os irmãos e seus animais, depois foi procurar o Reino do Torno do Ouro, pois havia se apaixonado por Verdadeira, enquanto esta era a linda garota. Depois lhe foi revelado do além, de que as três moças foram antes de nascer, prometidas a ele e aos irmãos, aqui na Terra.

O guerreiro saiu à procura do Reino do Torno do Ouro, mas não encontrou ninguém que já houvesse pelo menos ouvido falar em tal reino. Porém um ancião lhe informou: – Meu filho, eu conheço todos os cantos da Terra e jamais ouvi falar neste reino, portanto, não é reino de humanos. Pergunte aos animais irracionais, pois poderá ser um reino distante, dentro da floresta, quiçá a mais densa que existe, ou no fundo do mar ou no topo de uma grande montanha.

Então o guerreiro entendeu que só no mundo animal não humano, poderia ter notícia de tal reino, pelo que fez uma flauta de bambu para chamar os animais e através do som da mesma, convocou a todos: da terra, do ar e do mar. Animais quadrúpedes, de pena, de casco e de escamas. Todos atenderam ao chamado, exceto o urubu. Todos se reuniram numa grande assembleia às margens de um rio em uma Várzea. Porém, a fauna presente também não conhecia o Reino do Torno do Ouro. Afirmaram que sobre a terra e sob as águas não existia tal reino. Mas a raposa muito astuta, porém pessimista e maldosa falou: – De todos os animais existente, estão faltando as pombas e os urubus, e se o guerreiro viu as pombas voarem para o infinito nas alturas e disseram que iam para o Reino do Torno do Ouro, então está claro que esse reino é nas alturas, talvez no espaço sideral, donde não haverá volta. Portanto, me desculpe, mas, suas pombas, creio eu, jamais voltarão.

Todos concordaram e João da Morrona, convicto de que só as pombas e talvez o urubu conhecesse aquele reino, agradeceu a presença de todos, pela ajuda e se pôs a chamar o urubu. Foi um dia, dois dias e só no terceiro dia bem cedinho, sob os primeiros raios do sol e as primeiras notas da flauta, chegou o urubu apresentando cansaço: estava ofegante, tinha os olhos vermelhos e as penas ligeiramente arrepiadas. Chegou se mostrando contrariado enquanto perguntava: – Por que tanto me chamas? Já não tenho paz para ir a festas?

João da Morrona respondeu: – Trata-se de uma emergência. Por onde você andava? Pois, que eu estou há três dias a lhe chamar e você não me atende. Por quê?

– Ah! Eu estava muito longe. Encontrava-me no Reino do Torno do Ouro comendo buchos e tripas de vacas, porcos e frangos que foram mortos para alimentar a festa de noivado de três pombas que chegaram lá e são prometidas aos três filhos do rei daquele reino. Porém, estavam prisioneiras aqui na Terra e foram libertadas recentemente. Como só o herói que as libertou aqui na Terra tem poder para desobrigá-las do compromisso, lá no reino o rei tem pressa para o casamento evitando assim uma possível e triste surpresa.

João da Morrona então falou: – Mas é justamente para saber onde fica esse reino que eu lhe chamava. Eu preciso ir para lá com urgência, pois, aquelas pombas aqui na Terra após desencantadas serão mulheres e estão prometidas a mim e aos meus irmãos e foi me dada, à missão para resgatá-las, uma vez que fui eu quem as libertou da escravidão com a bruxa. Se eu não cumprir com essa missão, serei duramente castigado com a desonra e uma eterna solidão, minha e de meus irmãos.

O urubu respondeu: – O Reino do Torno do Ouro é muito distante! E fica em outra dimensão, além da camada de ozônio, aonde não se vai por água nem por terra, mas pelos ares. Como você não tem asas, o reino para você é inatingível. Você jamais chegará lá!

– Ora, não seja por isso, você vai me levar nas suas costas. Eu tenho que ir, pois, não posso deixar as pombas casar com os príncipes daquele reino, ainda porque estou perdidamente apaixonado pela Verdadeira.

O urubu disse: – Isso nunca! Eu jamais conseguirei levá-lo em minhas costas até o reino. É muito longe, estou cansado, tenho fome e preciso de uma boa carniça para recuperar as minhas energias antes de partir. Mas, partirei sozinho e com calma. Vou desfrutar da promissora festa saboreando as vísceras dos animais então mortos.

João da Morrona desesperado ofereceu o cão para o urubu comer, porém, ele achou pouco, então lhe ofereceu o cavalo – negócio fechado – O urubu comeu meio cavalo, cobriu com folhas o que restou para comer em outra oportunidade. Enquanto isso a carniça se tornaria bem fética, o que lhe proporcionaria maior energia.

O urubu entregou três sementes para João da Morrona, dizendo: – Guarde-as no bolso, sente-se sobre minhas asas e segure firme em mim, pois a viagem é longa. Só olhe para baixo quando eu mandar.

O urubu com a sua carga, levantou vôo e voou, voou, voou. Subiu, subiu, subiu e lá no alto, muito no alto, ele pediu pela primeira vez: – Seu João da Morrona, olhe para baixo e me diga de que tamanho o senhor vê o mundo.

Ele respondeu: – Daqui eu vejo o mundo do tamanho de uma roda de ralar mandioca.

Então o urubu disse: – Ainda estamos muito longe e estou cansado, jogue uma semente.

João jogou a semente que de repente germinou e cresceu formando uma enorme árvore que os alcançou nas alturas. O urubu pousou em uma galha e disse para João: – Eu estou com muita fome, você fica aqui e eu vou voltar a Terra para comer o que sobrou do cavalo.

Então João assustado falou: – De jeito nenhum, eu nunca vou ficar aqui sozinho!

O urubu disse: – Eu tenho que comer alguma coisa, pois se não comer pelo menos um pouquinho não conseguirei levantar vôo com você sobre mim.

Então João da Morrona levou a espada a uma perna e retirou a panturrilha e a entregou para o urubu comer. Após comer, o urubu, ainda que não satisfeito, levantou vôo e recomeçou a viagem.

Depois de algum tempo o urubu perguntou pela segunda vez, qual o tamanho do mundo? Então João da Morrona respondeu: – Eu vejo o mundo do tamanho de uma roda de fiar.

O urubu o mandou jogar outra semente que foi jogada e nasceu outra árvore de tamanho descomunal que chegou até eles. O urubu posou num galho e disse que suas energias estavam no fim e teria que comer, pelo menos um pouquinho. João retirou a panturrilha da outra perna e lhe deu para comer. O urubu com sua carga, um pouco mais leve, e energias renovadas, alçou voo novamente. Algum tempo depois, pela terceira vez perguntou: – Seu João da Morrrona, de que tamanho o senhor vê o mundo?

Ele respondeu: – Agora eu vejo o mundo do tamanho de uma roda de fuso.

O urubu disse: – Já não estamos tão longe, mas preciso descansar, atire a última semente, mas, agora para o alto, pois, a árvore virá do Reino do Torno do Ouro.

A semente foi atirada para cima e a copa da monstruosa árvore chegou até eles de cima para baixo e o urubu novamente posou em um galho e falou: – Agora você me aguarde aqui, pois, tenho que ir ao reino para comer, há horas que estou me alimentando mal, comendo apenas as batatas de suas pernas, fresquinhas. Isso é pouco para o esforço físico que estou fazendo. Eu preciso é maior de quantidade de alimento, se possível, uma carniça apodrecida, para refazer as minhas energias.

João sentado no galho daquela árvore de cabeça pra baixo, disse: – Pelo amor de Deus, não me deixe aqui sozinho.

Dizendo isso sacou a espada e retirou o seu grande glúteo e deu ao urubu para ele comer. Era uma porção maior de carne e menos consistente que a carne das panturrilhas. O urubu comeu e levantou novo vôo levando a carga que diminuía a cada pouso.

Depois de algum tempo de vôo, o urubu repetiu a pergunta e João respondeu: – Não vejo mais mundo, só existe um amarelão lá embaixo.

O urubu disse: – Estamos chegando, ouça os estampidos dos foguetes. Aonde quer que eu lhe deixe?

Ele respondeu: – Me deixe aonde tiver água franca, pois tenho que lavar o sangue dos ferimentos.

O urubu o deixou na fonte d’água que abastecia o reino se despediu e foi-se embora dizendo: no palácio do reino encontraremos e foi procurar restos dos animais que haviam sido mortos para a festa. Precisava como já havia dito: comer uma porção maior, e de carniça bem fedida para lhe trazer novas energias.

João da Morrona lavava os ferimentos que não paravam de sangrar e lhe causavam muita dor. Para secá-los, resolveu a usar a camisa e para tanto se despiu, porém, ao retirá-la, caiu do bolso o lenço que as pombas haviam lhe jogado ao partir. Ele se lembrou das palavras que elas falaram na ocasião e o esfregou nas mãos, ato contínuo, todos seus ferimentos se desfizeram com a completa regeneração do glúteo e das panturrilhas e até suas roupas ficaram limpas, passadas e perfumadas.

Quando chegou ao reino foi logo visto pela Verdadeira, que chamou as irmãs e foram com ele ao rei e o apresentaram, dizendo: – Olhe Majestade, este é o guerreiro que nos salvou da bruxa malvada na Terra e agora veio nos buscar. Devemos ir, pois, na Terra somos prometidas a ele e aos seus irmãos. Uma vez que ainda sem ter asas conseguiu chegar aqui, isso lhe credencia a levar-nos de volta.

Assim, voltaram todos para a Terra. Elas vieram voando e ele, montado no urubu, mas numa viagem bem mais fácil, sem interrupções para pousos, pois o urubu vinha na banguela e economizava energias.

Em seguida casaram todos os irmãos no mesmo dia e fizeram uma grande festa: a Verdadeira se casou com João, Juriti com José e Fogo apagou com Joaquim.

Meu pai me contava essa e outras estórias. Todas lindas, maravilhosas, mas, já se passaram muitos anos e não me lembro de outras. Lembro-me desta, talvez por ser a que ele mais contava e isso deve ser porque, a que ele mais gostava. Neste trabalho reproduzo-a em homenagem ao meu velho querido e saudoso pai, Lucas Cordeiro Valadares.