O leite de Ritinha
Já passa de século agora. Foi na pandemia da espanhola, no povoado da Onça, de onde provém minha família paterna que o fato se deu. Com a renca de filhos prostrados nos estrados apinhados na casinha em que viviam, vovô Velusiano, seleiro curvelano, e vovó Inhana não tinham muito o que fazer, a não ser alimentar-se da esperança de serem poupados daquele flagelo.
Uma chegada à janela para apanhar um pouco de ar fresco, injetava mais uma lufada de pânico com a visão do fluxo crescente de cadáveres que vinham chegando das roças vizinhas, levados em padiolas para o cemitério, sem passar pelos ritos das encomendações.
Com as barricas e barrigas vazias, a inércia podia sustentar o corpo por mais agonias. Foi quando veio a decisão de Velusiano incumbir a filha Rita, de seus sete anos, e a menos combalida da prole a ir buscar um leite para se paliar a fome da família.
E a Rita foi. Se levou uns cobres, ou se fiou mais uma vez, não sei. Possivelmente foi na venda do Capanema, negociante local, pai do Gustavinho, já rapaz e estudante pra advogado, e voltou com a leiteira abastecida.
Só não contava porém com o escorregão que lhe sobrevém...Todo o leite se derramou, adicionando-se ao que Ritinha chorou. Mas ao fim e ao cabo aquela cena de um pesadelo não passou, e a família toda vingou.