A CAVERNA RASGA-MORTALHA

A quietude da noite deixava no ar uma sensação de profunda paz interior e esse silêncio era interrompido apenas pelo canto de pássaros e barulho de alguns animais noturnos.

Todos agasalhados em volta da fogueira, Tio Barnabé pôs o chapéu de palha sobre o joelho e, olhando para o lado do morro, um ponto alto da mata fora dos limites do Sítio do Pica-pau Amarelo, apontou à direção com uma das mãos e falou:

— É lá. É lá que fica a caverna mal-assombrada. A Caverna Rasga-Mortalha. O Saci-pererê, conhecido por sua alegria, divertindo sempre as pessoas e os animais (e sempre aprontando travessuras com todos), agora andava pela mata encabulado, desconfiado de coisas estranhas acontecendo.

— Ei, sou personagem principal dessa história! – Disse o Saci, que estava bem acomodado para ouvir as histórias que estavam sendo contadas naquela noite.

Continuando sua história após a participação do Saci, Tio Barnabé seguiu falando:

— Com um gorro vermelho na cabeça, o Saci-pereré encontrou e destruiu armadilhas para captura de pássaros e outros animais e viu ninhos de tucanos remexidos. Coisas que os moradores do Sítio não faziam.

— Muito parecido com ação de caçadores — falou consigo.

A partir daquele dia, Saci procurava na mata vestígios de suas suspeitas. Caminhava pelos limites do Sítio, seguindo as cercas de arame próximas aos morros, quando de repente sentiu um calafrio invadir seu corpo ao ouvir um canto de pássaro assustador ecoando pelas matas. Os animais assustados se afastaram procurando abrigo. Até o Saci que dizia não temer nada pela primeira vez admitiu sentir medo. E, como os outros animais, com pressa, decidiu também se afastar dali.

No caminho de volta encontrou junto a um tronco de árvore um pedaço de fumo de corda. Saci ficou imaginando quem poderia tê-lo deixado ali. Pra quem seria a oferta? Lembrou de seu amigo Caipora, um ser das matas que pode aparecer em formas diferentes para cada um. Era para ele que os caçadores ofereciam fumo. Era a maneira deles fazerem amizade com o pai da mata, de deixá-lo calmo, e assim caçarem os animais sem serem incomodados.

Ainda no caminho de volta o Saci-Pererê encontrou jogada embaixo de uns galhos secos uma fêmea de porco- -do-mato com um filhote, mortos. O Caipora não iria gostar nada em saber disso, pensou Saci. Ele não admite caçadores matarem fêmeas prenhas nem amamentando. Os caçadores tinham ultrapassado todos os limites e o Caipora precisava tomar conhecimento, pensou o Saci.

O sol já estava próximo do ocaso e para o Saci aquele tinha sido um dia de muitas emoções. Decidiu descansar e, na manhã seguinte, nos primeiros raios de sol, sairia à procura de seu amigo, sabia onde encontrá-lo. Saci acordou com disposição e foi em direção onde os porcos-do-mato costumavam se alimentar. Depois de caminhar bastante pelas matas fechadas, atravessando córregos, subindo e descendo serras, finalmente encontrou um grupo de porcos-do-mato indo em direção a uma pequena fonte de água ao pé da serra. Um pouco afastado do grupo, montado num majestoso e possante porco, vinha o Caipora. A pele era avermelhada e coberta de pelos, e numa das mãos segurava uma vara em forma de lança; o olhar sempre atento.

Sentaram-se nas pedras próximas à fonte de água e o Saci-pererê começou seu relato explicando o motivo de tê-lo procurado. O Caipora ouvia tudo com atenção e demonstrou preocupação com o que vinha acontecendo naquelas terras. Por fim, o Saci falou sobre o canto que havia ouvido e o desespero de animais e pássaros em se afastarem do local.

— Era um canto parecido como quando se rasga um pedaço de tecido — tentando reproduzir o som, fez: Cráááááá... Um som alto e forte, assustador. O Caipora era conhecido como o pai das matas, protetor de plantas e animais. Conhecia todos os segredos do lugar e os artifícios usados pelos caçadores. Pediu ao Saci que o levasse até o ponto onde ele havia ouvido o estranho barulho de tecido sendo rasgado. No íntimo o Caipora já imaginava o que poderia estar acontecendo. Mas, antes de confidenciar com o Saci, queria ter certeza.

Procurando fazer o mesmo caminho do dia anterior, o Saci-pererê levou o Caipora até onde havia encontrado mortos a mãe e o filhote de porco-do-mato. O Caipora ajoelhou-se próximo aos corpos dos animais e pôs suas mãos sobre eles; ficou em silêncio por alguns instantes, Saci apenas observou a cena. O Caipora levantou-se e com um gesto convidou o Saci a seguirem caminho.

— Na volta novamente passaremos por aqui — disse o Caipora.

Depois de uma longa caminhada o Saci-pererê apontou para o alto do morro, na direção que, segundo ele, teria vindo o estranho canto. Agasalhados na sombra de uma árvore, ficaram um longo tempo observando alguma movimentação estranha naquela direção, e nada. O Caipora deu dois leves assobios e pouco depois chegou junto a eles o grande porco-do-mato, montaria do caipora. Depois de uma curta conversa e alguns gestos do Caipora, o porco seguiu em direção ao morro. Não demorou muito o tempo de espera e ouviu-se outra vez o canto, Cráááááá... e a mesma reação dos animais fugindo assustados aconteceu.

O Caipora esperou os animais se acalmarem e segurando o braço do Saci-Pererê, explicou:

— Conheço aquele morro e lá em cima tem uma caverna que está servindo de rancho para os caçadores. Sempre que eles pressentem uma presença estranha, alguém que possa denunciar suas presenças ali, eles reproduzem o canto da coruja rasga-mortalha. Dizem que é uma ave agourenta, sempre que canta é sinal de coisas ruins, prenúncio de morte de algum animal ou de pessoas. Lá não tem coruja nenhuma, são apitos fabricados pelos caçadores para reproduzirem o canto da coruja e de outras aves e o ruído de outros animais. Assim, eles se aproximam sem que os animais se assustem e os abatem com facilidade.

Enquanto planejavam uma ação a fim de dar um grande susto nos caçadores e expulsá-los de vez daquelas terras, voltaram até os galhos secos e viram que a mãe e seu filhote não estavam mais ali, apenas seus rastros se afastando do local — dizem que o Caipora tem o poder de ressuscitar os animais. Seguiram juntos andando pela mata e os animais que encontravam no caminho recebiam instruções do Caipora, era parte do plano. Ele também indicou onde o Saci-Pererê poderia encontrar um casal de corujas rasga-mortalha, e ele saiu para buscá-las. Enquanto isso o Caipora continuava dando instruções aos animais e às plantas.

Nos dias que sucederam, a vida na mata transcorria normalmente, embora todos ali permanecessem em vigília, esperando os caçadores descerem do morro para caçar. E foi numa noite de sexta-feira, dia em que o Caipora se sente mais poderoso, que viram uma fraca luz de lanterna se aproximando do local onde estavam. Eram os caçadores. As corujas rasga-mortalha pousaram num galho, local onde com certeza os caçadores passariam próximos.

Todos permaneceram em completo silêncio, esperando o momento certo de agir. O Caipora esperou os caçadores se aproximarem mais e com um leve assobio deu o sinal. As corujas rasga-mortalha soltaram seu canto o mais alto que podiam. Os caçadores ficaram estáticos, tremendo de tanto pavor. Jogaram lanternas e armas no chão e saíram correndo pela mata, desesperados. Enquanto mais corriam, mais assustados eles ficavam. As árvores tremendo, os galhos balançando as folhas, os macacos nas copas das árvores fazendo algazarra com seus assobios, a cantoria dos pássaros, o barulho de outros animais... tudo ali dava a impressão de uma noite de pesadelos. Um pouco atrás vinham Saci e Caipora. Eles se divertiram com a reação de medo dos caçadores e deram gargalhadas de alegria que ecoaram pela mata.

Desde aquele dia, nunca mais apareceram caçadores por estas bandas. Graças ao Saci e ao Caipora. A Caverna Rasga-Mortalha continua lá, no alto do morro, em completo silêncio — Concluiu Tio Barnabé, colocando o chapéu na cabeça e dando mais um sorriso pelo canto da boca.

Autor; José Henrique Rodrigues de Sousa

Pseudônimo - Henrique Rodrigues

Conto publicado na antologia Na fogueira do Sítio, editora Rouxinol.

Henrique Rodrigues Inhuma PI
Enviado por Henrique Rodrigues Inhuma PI em 03/02/2020
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