O fantasma e a bailarina

O fantasma e a bailarina

Mariana era uma menina magricela que sonhava em ser bailarina. Mas como todo sonho tem seu preço, o sonho de Mariana era mais caro ainda. Sua mãe era muito pobre, trabalhava como empregada doméstica e o pouco que ganhava, mal dava para as despesas da escola da filha. Elas moravam em uma pequena casa de aluguel na periferia. E em breve, caso os meses de aluguel atrasados não fossem quitados o mais breve possível, mãe e filha seriam despejadas da humilde casa.

Mariana alheia aos problemas financeiros da mãe, não hesitava em assistir diariamente aos ensaios de balé que eram realizados depois da aula com os alunos de tia Mabel, a professora de balé. Ela se sentava diante da imensa porta de vidro onde as aulas eram ensaiadas e assistia deslumbrada àqueles passinhos graciosos que as jovens bailarinas executavam. E depois ela os repetia em casa com grande perfeição. Era linda e elegante como uma dançarina. Tinha o porte e o talento de uma grande bailarina. A mãe ficava encantada ao vê-la dançar. Não havia música, apenas o sussurro do vento. Não havia um mestre, mas havia a natureza, e como os delicados jasmins que se moviam com o vento, Mariana era movida pelo coração e pela alma.

E ela bailava.

E bailava.

Bailava cheia de graça.

Um dia um amigo de tia Mabel foi visitar um velho conhecido que vivia nas proximidades da casa de Mariana e viu a menina dançando sem música na porta de casa. Ele parou embevecido, admirando tão bela bailarina! Não hesitou em contar a tia Mabel o tesouro que ele havia encontrado na periferia.

_Uma bailarina que dança sem música! Era só o que faltava! Desafiou tia Mabel.

E então Tia Mabel foi até lá e pegou Mariana fazendo uma demonstração de balé para a mãe e para os passarinhos. A menina era realmente um grande achado! E então tia Mabel lembrou-se da menina maltrapilha, que, depois da escola ficava parada em frente à escolinha de balé, assistindo ao ensaio de suas jovens alunas. Mariana bailava tanto ou até melhor que suas alunas da turma do balé. Ela não tinha técnica, mas do jeito que bailava nada importava. Era uma autêntica bailarina. A menina era de fato um grande talento!

Tia Mabel resolveu então investir na promissora carreira de Mariana. Disse a sua mãe que a partir daquele dia, Mariana passaria a ser uma de suas alunas e faria as suas aulas de graça. E assim fez! Mariana começou a frequentar as aulas de balé de dona Mabel. Ganhou roupas de bailarina, fez coque no cabelo e começou a dançar junto às outras meninas.

Mas Mariana convivia com a inveja das outras bailarinas que não suportavam assistir ao seu favoritismo junto à tia Mabel. Mariana muito sofria com os insultos e gracejos de uma tal Olívia. A menina Olívia era um verdadeiro ogro e desprovida de charme e leveza. Mas como era filha de um importante deputado estadual daquelas redondezas estava em todas as principais apresentações de balé. Olívia acreditava que beleza e leveza se adquiriam comprando. Porém o que Olívia não sabia, era que, dignidade e classe, dinheiro nenhum conseguia comprar. Títulos são compráveis, mas, nobreza da alma e caráter não se vendem em shoppings ou supermercados. E assim Mariana suportava todas as humilhações em busca de seu grande sonho, se tornar uma perfeita bailarina. Não queria ser famosa, ela só queria mesmo era dançar.

Um dia sua mãe conseguiu um emprego melhor em uma fábrica de cosméticos e decidiu se mudar para um lugar mais confortável. Era uma casa velha e antiga, mas bem mais próxima do centro da cidade e mais perto também da escola de balé de Mariana. Mudaram-se assim logo depois. A casa fôra um antigo casarão, outrora habitado por uma abastada família de produtores de café. A família havia morrido em misteriosas circunstâncias. Diziam os mais velhos, que o casal que ali morou, havia morrido de tristeza logo após a morte do único filho. O certo mesmo é que ninguém sabia nada.

Mariana adorou o velho casarão. Lá havia um imenso quintal que circundava toda a casa. Sua mãe fez uma bela horta e pouco tempo depois já colhiam tomates e pimentões.

Em uma fresca manhã de maio, Mariana pegou o radinho de pilha da mãe e o levou para o quintal. Gostava de escutar músicas clássicas enquanto arrancava ervas daninhas dos canteiros de legumes. De repente começou a tocar uma linda canção de Bach e então surgiu uma súbita vontade de dançar. Ela se levantou num solavanco e começou a rodopiar pelo quintal. Com delicadeza ergueu os graciosos braços para cima, tais como fazem as borboletas quando batem as asas. Suas pernas finas pareciam lírios brancos que se dobram com o sussurrar do vento. Mariana flutuava sob a tênue luz do sol.

De repente ela ouviu alguém.

_Palmas, palmas! Que todos se curvem para a famosa bailarina russa vestida de chita! Batam palmas, senhoras e senhores!

E fez uma reverência fingindo falsa educação.

_Quem é você seu mal educado? E como entrou aqui, se ninguém lhe chamou? Perguntou a tímida Mariana depois de ser flagrada em um momento tão íntimo.

_Meu nome é Toni, seu escravo! Minha linda bailarina caipira!

Respondeu o debochado garoto louro de cabelos encaracolados que mais se parecia um anjo.

O menino parecia se divertir com a fingida raiva de Mariana. E ficou provocando-lhe cada vez mais. Mariana não se conteve acabou caindo em gargalhadas. A partir daí uma linda amizade começou a surgir entre os dois. Uma amizade que não iria desaparecer nem mesmo com a morte.

Toni ia todos os dias ao quintal conversar e brincar com Mariana. Ele adorava vê-la dançar. Mariana tentava sempre puxá-lo pelas mãos para que Toni dançasse com ela, mas o garoto sempre se esquivava. Muitas vezes Mariana pedia-lhe que a ajudasse a arrancar as ervas daninhas que cresciam nos canteiros. Toni dizia à garota que infelizmente não podia ajudá-la e realmente parecia ficar muito aborrecido em não poder ser útil. Mas o que Toni gostava mesmo era de vê-la dançar. Toni falava-lhe de coisas esquisitas. Dizia-lhe que numa outra vida Mariana havia sido uma famosa bailarina russa. Ela achava aquilo tudo muito engraçado.

_Como Toni poderia saber que ela havia sido uma bailarina russa?

Mariana não se fazia de rogada, e bailava cada vez mais para o encantado Toni, que parava tudo só para admirá-la dançando. Toni era a sua principal plateia. Ele a aplaudia e assoviava, jogando pétalas de rosas no verde tapete de gramas, por onde ela passava bailando. Toni se tornou para Mariana um grande amigo e parceiro de travessuras. Depois de sua mãe, ele era seu maior incentivador. Após as aulas de balé, Mariana corria para casa para mostrar a Toni os passos que ela havia aprendido naquele dia. E ele como sincero admirador assistia a tudo bem quietinho.

Toni era um grande mistério para Mariana. Ele nunca falava de sua vida e ainda conhecia o velho casarão como a palma de sua mão. Mariana ficava cada vez mais intrigada.

Um dia Toni levou Mariana até o velho porão do casarão. Ele mostrou a ela uma entrada secreta que ninguém conhecia. Lá havia uma tralha muito antiga e bastante empoeirada. Num canto escuro havia uma velha bicicleta azul jogada no chão. O estofado da bicicleta havia sido roído por ratos, que habitavam em abundância no porão do velho casarão.

_Esta bicicleta era minha! Disse Toni muito triste.

_Como sua Toni? Essa bicicleta parece mais velha que minha avó! Dizia Mariana brincando.

Toni deu um sorriso triste e logo chamou Mariana para saírem dali. Mas a garota havia descoberto um velho baú e queria abrir para descobrir o que havia dentro dele.

_Hoje não amiguinha, vamos embora, por favor. Este lugar me traz tristes lembranças!

_Mas pelo menos podemos levar a sua velha bicicleta? Perguntou a indignada garota.

_Traga se quiser. Mas como sabe, eu não posso ajudá-la!

Mariana não sabia por que Toni nunca podia ajudá-la em nada. Isso para ela era um enigma. Embora às vezes achasse que o menino sofria de alguma doença grave. Ou talvez quem sabe, Toni fosse um preguiçoso mesmo!

Toni se tornava cada vez mais uma obsessão para Mariana. Ela queria apresentá-lo para a sua mãe. Só que ele nunca aparecia quando ela estava por perto. Era só a mãe dar as costas e Toni aparecer do nada, como se fosse um fantasma. Mas como dizia a vovó Judite, fantasmas não existem!

Se por um lado a amizade com o esquivo Toni florescia a cada dia, do outro lado à inveja das bailarinas era cada vez maior. E para atiçar ainda mais a inveja entre as bailarinas, Mariana foi escolhida para ser a protagonista do espetáculo "Alice no país das maravilhas". Esta seria a principal atração daquele fim de ano. Mariana seria Alice, a maior estrela do espetáculo. A invejosa Olívia não passaria de uma reles carta de baralho no exército da rainha de copas, papel este que seria interpretado pela tia Mabel. A inveja corroia a alma de Olívia. Ela odiava Mariana acima de suas forças. Além de pobre e desclassificada, a miserável ainda reinaria absoluta no espetáculo natalino! Assim pensava Olívia. A infeliz garota destilava ódio e veneno por todos os poros. A coisa não ficaria assim, pensava a maldosa Olívia, já arquitetando um plano diabólico que destruiria para sempre a vida da bailarina maltrapilha.

Estava tudo preparado para o grande espetáculo.

As bailarinas corriam de um lado pro outro, ora ajustando a roupa, ora retocando a maquiagem. O primeiro ato foi belo. Mariana abriu o espetáculo numa singela roupa de Alice e dançou com maestria e talento. A garota já dançava como uma profissional do balé e saiu do palco ovacionada.

Mas o espetáculo estava apenas começando.

E assim o espetáculo prosseguiu como um sucesso total. Mariana correu para fazer a troca de roupa que encerraria a apresentação. Desta vez, haveria também uma troca de sapatilhas, que já estava prevista para o ato final. A professora Mabel e as alunas do corpo de balé já sabiam desta troca e a hora que Mariana chegou ao camarim, Olívia já estava saindo e lançou-lhe um olhar de ódio e triunfo. Pareceu à Mariana que Olívia lhe preparava alguma coisa ruim. Mas como seu coração era bom e achava que todos eram como ela, suas dúvidas rapidamente se dissiparam e ela correu para dentro do camarim. Precisava se trocar rapidamente porque o ato final estava prestes a começar.

Ao fazer a troca de sapatilhas, Mariana não percebeu que dentro dela havia um venenoso escorpião. A malvada Olívia havia capturado o animal peçonhento na véspera do espetáculo. Ela queria que a picada mortal do escorpião acabasse com o sucesso de Mariana. Inocente, a garota calçou rapidamente a sapatilha e pôde sentir uma pequena picada em seu calcanhar. O escorpião já havia injetado o seu veneno mortal. Mas ela não havia sentido o efeito do que ainda estava por vir. Retirou a sapatilha imaginando haver algum alfinete de roupas dentro dela que justificasse a picada. Mas quando começou a retirá-la do pé ouviu uma forte batida na porta.

_Mariana, ande logo! Só está faltando você para darmos início ao ato final!

_Estou indo tia Mabel! Já estou terminando de calçar a sapatilha!

Respondeu a menina, que ao virar a cabeça em direção à porta do camarim, não pôde ver um escorpião, ainda com vida, sair de dentro de sua sapatilha. Mariana correu para o centro do palco. Só estava faltando ela para dar início ao fim do espetáculo.

E então ela começou a dançar. Só que desta vez foi diferente. Ela dançava regida por uma força interior, parecia que Mariana dançava para deus e para Toni, que, em cima do palco a aplaudia com alegria. Mariana foi se sentindo cada vez mais fraca, mas, encontrou forças para terminar aquela dança.

Ela sabia que aquela era a sua última dança.

Mas para contrariedade de Olívia, Mariana dançou como num sonho.

A plateia se levantou embevecida.

Mariana brilhou como uma estrela. E não foi à toa que tia Mabel tinha lhe dado o papel principal na atração. Mariana nasceu para bailar. Mas o que Mabel não sabia, é que a garota também morreria bailando. E ao chegar até a menina para lhe parabenizar pela brilhante atuação, ela caiu desfalecida em seus braços. Sua estrelinha principal havia acabado de se apagar. Mas a morte não lhe parecera tão feia, pois Mariana sorria, conservando a sua beleza.

Bem diferente de Olívia.

Há um sábio ditado popular que diz que, “quem com ferro fere com ferro será ferido”. E assim aconteceu com Olívia. Ela jamais poderia imaginar que o mesmo escorpião que usou para matar Mariana, havia se libertado e caminhado a esmo pelo palco, procurando por outra vítima para injetar o seu veneno. Que por ironia do destino veio a ser a própria Olívia.

Mesmo vestida de mísera carta de baralho ela foi descoberta e mordida pelo mesmo escorpião, que minutos antes havia matado a estrela principal. Olívia teve o mesmo fim trágico de Mariana, porém a morte não lhe pareceu tão bela. Ela tombou no chão com uma careta medonha e assustadora.

Mariana despertou como num sonho. Sua mãe e muitas pessoas choravam ao seu redor. Mas ninguém parecia vê-la. Somente Toni, que lhe apareceu sorrindo:

_Venha Mariana! Agora eu posso pegar sua mão.

Ele que sempre relutou em abraçá-la agora lhe estendia as mãos. Saíram de mãos dadas do teatro e foram para o velho casarão.

_Quero te mostrar uma coisa! E Toni foi levando a menina para a entrada secreta do porão. Com a ajuda de Mariana, abriram um baú que a menina sempre teve curiosidade em abrir, mas que Toni nunca concordava. Dentro do baú, uma infinidade de papéis velhos jaziam amontoados. Mas um jornal bem antigo despertou a atenção de Mariana. Em uma imensa manchete noticiava a morte de Antônio Theodoro de Almeida Prado, um garoto de nove anos, filho de um casal de portugueses produtores de café. Era gente muito rica e o garoto era filho único deste casal. A notícia também contava que no dia em que Antônio completara nove anos, seus pais lhe deram de presente uma linda bicicleta azul. E logo que Antônio Theodoro ganhou a bicicleta saiu ansioso para mostrá-la aos amigos. Mas ao passar pelo portão de casa, um automóvel que vinha em alta velocidade atirou Toni e sua bicicleta fortemente ao chão. Toni perdeu a vida naquele momento, mas a bicicleta estranhamente não teve um arranhão sequer. Coisas do destino!

A partir deste dia a vida do casal nunca mais foi à mesma, atiraram a bicicleta no porão e trancaram-se em casa. Meses depois o pai morreu, e pouco tempo depois, a mãe também morreu. Segundo diziam, morreram de tristeza.

_Toni, é você o garoto de quem fala a notícia? Não pode ser! Você é um fantasma? Perguntou Mariana boquiaberta.

Toni respondeu:

_Sou amiguinha! E agora você também é!

De repente Mariana encontrou as respostas para as suas perguntas de antes. Porque Toni nunca lhe abraçava, e por que ele nunca lhe ajudava a arrancar as ervas daninhas dos canteiros. Ele simplesmente não podia!

Mas Mariana não estava triste. Ela sabia que um dia todos iriam partir e que apesar da saudade, ainda reencontraria sua mãe e a abraçaria novamente.

_Venha Mariana! Vamos deixar as tristezas de lado e partir para o horizonte. O seu palco te espera e você jamais deixará de dançar! Toni a empurrou com carinho e saíram para o quintal. A bicicleta azul estava encostada num pé de goiabeira. Toni tomou a bicicleta e pediu à Mariana que subisse na garupa. Esta seria a primeira volta de Toni naquela bicicleta. Desde que os pais lhe deram de presente.

Eles partiram para o infinito. Toni agora levava sua estrela principal para dançar em um palco muito maior. Em um palco em que somente as estrelas podem brilhar. O céu. .

Fim

Síria Malta

Siria Malta
Enviado por Siria Malta em 01/01/2019
Reeditado em 17/05/2019
Código do texto: T6540429
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