O Presépio mágico

O PRESÉPIO MÁGICO


Miguel Carqueija


Naquele Natal, Carla ganhou um presépio de presente. Procurando pela cidade, seus pais haviam descoberto por acaso, numa curiosa loja de brinquedos artesanais, aquela raridade. O presépio era todo de madeira, fora algumas lâmpadas, bem como engrenagens e fios que faziam com que os personagens se mexessem. Era grande: ocupava mais ou menos o espaço de um vão de escrivaninha. Nele estavam as figuras habituais: o Menino-Deus, Nossa Senhora, São José, o burrinho, o boi, os pastores e os magos. Lá estava também a Estrela de Belém, que acendia e apagava com uma luz azul bem suave.
A estrelinha, porém, tinha cara, isto é, uns olhos abertos, com pestanas, nariz e uma boca sorridente. Encimava todo o presépio e era na verdade uma lâmpada enquadrada na moldura que formava a famosa cauda da estrela, à semelhança de um cometa.
Aquela estrelinha impressionou Carla vivamente. Parecia tanto ter uma personalidade! Naquela noite de 25 de dezembro, a menina não queria dormir. Sentou no chão, em frente do presépio que havia sido colocado junto a uma das paredes, e ficou olhando os detalhes, um por um, mas voltando sempre a fixar o olhar na simpática estrelinha.
Depois de muito, muito tempo, acabou sentindo sono. Mas quando já ia se dirigir para a cama, ajoelhar junto a ela e fazer uma apressada e sonolenta oração, viu uma coisa fora do comum: a estrelinha tinha piscado. Carla piscou também, e piscou, e piscou, sem saber se acreditava; aí a estrela piscou outra vez e alargou o sorriso, estão a garotinha não teve mais dúvidas. Aquele presépio devia ser mágico, pois a estrelinha piscava! E sorria como gente.
— Alô — disse por fim a menina, animando-se a entrar em contato.
— Alô — respondeu a estrelinha, movendo os lábios como se fosse um desenho animado.
— Você é de verdade! — Carla, sendo criança, não se espantava demais. — Você fala como gente!
— Sim, eu falo — disse a estrela, com voz melodiosa. — E quero muito conversar com você.
Com as mãos em torno dos joelhos, vestida com um pijama cheio de bichinhos coloridos, Carla havia perdido o sono. Agora só queria conversar com aquela sua nova amiga.
— Como é que você consegue falar? — perguntou a menina.
— E você, como consegue?
— Eu tenho boca, ora.
— Pois é, eu também tenho. Você já respondeu a sua pergunta.
Carla riu, divertida.
— E o que é que você quer conversar comigo, estrelinha?
— Muita coisa! Mas não fale aos seus pais, que eles não vão acreditar que eu existo. Fica sendo um segredo nosso.
— Eu sei guardar segredo.
— Que bom. Então me diga, Carla: o que é que é mais importante no Natal?
— O Menino Jesus, é claro. Eu sei que tem muita gente que esquece dele, mas isso é errado.
— Muito errado. Mas o Menino Jesus está muito satisfeito com você, sabia?
— É mesmo? — a menina sentiu-se lisonjeada. — E por que, pode me dizer?
— Primeiro, porque você não esquece d’Ele, nem de sua Mãe, nem de seu Pai adotivo. Segundo porque você é boa para com seus pais e seu irmãozinho. Terceiro, porque você também é boa com os animais.
— Pois é! Eu gosto muito dos bichos... da Kika inclusive, eu gosto demais...
Referia-se à cadela da casa, um animal de pelos compridos e rosto de raposa, muito alegre.
— Eu sei disso. Agora me diga: você se sente feliz com a sua vida?
— Puxa, demais! Eu tenho tudo... não me falta nada...
— Você se alimenta bem?
— Bastante! Mamãe tem medo que eu engorde e não quer que eu coma muito doce...
— Você tem todas as roupas que precisa?
— Até mais! Roupas, sapatos, lenços, guarda-chuva... acho que não falta nada. Ah, tenho bonés também! Aquele boné carmim, que eu adoro...
— E o que você acha da sua cama?
— Ah, ela é muito confortável! Eu até boto a Kika para dormir junto comigo, ela adora, mas quando papai ou mamãe pegam, não gostam... é uma pena, não é estrelinha?
— Eles devem ter medo que você pegue uma alergia por causa dos pelos...
— Ah, mas a Kika não me passa alergia alguma!
— Talvez. Ah, e o seu quarto, gosta dele?
Carla já estava achando aquelas perguntas esquisitas, mas talvez a estrelinha estivesse sem assunto. Mas respondeu de boa vontade:
— Ah, estrelinha, eu gosto sim! Esse papel de parede cheio de papoulas, hortênsias e copos-de-leite... o tapete, o banheirinho... acho que é bom demais! E eu já aprendi a colocar as fitas de vídeo...
— E brinquedos, você tem bastante?
— Tenho! Até já enjoei de alguns deles... mas de vez em quando eu os pego, porque assisti aqueles filmes, “Toy story” 1 e 2...
A estrelinha sorriu.
— E sua família, gosta dela?
— Se gosto? Está brincando? Eu adoro! Adoro eles!
(Ela de fato usava muito o verbo “adorar”, em seu significado de exageração.)
— E os seus amigos? Você tem muitos?
— Eu tenho! Só na escola, uma porção! Meninos e meninas. O Alan, a Janaína, a Gabriela, o Artur, o João, o Edmundo, a Bruna...
— Pois é. Agora reflita: você tem todas essas coisas. Mas, e as outras crianças do mundo?
— Não sei. Há tantas crianças no mundo!
Com as mãos espalmadas nas faces, queixo nos joelhos, ela estava intrigada e interessada. Aonde iria parar aquela conversa toda?
— Me acompanhe, Carla. Vou lhe mostrar a vida de uma criança... que não mora muito longe daqui.
— Acompanhá-la? Mas como? Eu não posso sair de casa agora!
— E nem precisa. É algo muito simples. Fique onde está.
A estrelinha brilhou e rebrilhou... e uma névoa azul foi surgindo e envolvendo aos poucos a menina. Logo ela se sentia como se flutuasse, apesar de continuar sentada.
— Mas o que é isso? Onde é que nós estamos?
— Não se assuste. Só observe e escute... com atenção.
Estavam agora dentro de uma casa. Mas que contraste em comparação com a casa de Carla! Paredes úmidas, repletas de manchas de limo e trechos com a tinta descascada, as lajotas à mostra. Um chão velho e esburacado, de tacos, muitos soltos ou ausentes. Num quartinho despojado, uma menina com a idade de Carla chorava em silêncio, debruçada na janela, onde pendurara uma meia.
Ela espera, inutilmente, a visita do Papai Noel — explicou a estrela. — Só que nem comida direito eles têm, o que dirá brinquedos. Ela não tem uma família tão boa como a sua: apanha dos pais, que são impacientes por causa da miséria. Os irmãos mais velhos fazem pouco dela. E tem poucos amigos. Observe as roupas andrajosas, a pobreza do quarto. O carrinho quebrado e o pião velho. O que você acha que devemos fazer?
— Eu posso falar com ela, estrelinha?
— Não, porque nós não estamos aqui de verdade.
— Vou dar a ela o meu carro de bombeiros, e um dos meus panetones! Ninguém sentirá a falta: o carro tem dois anos...
— É uma boa iniciativa. Depois, procure fazer amizade com a Ângela. É esse o nome dela. E ela precisa muito de bons amigos.
— Estrelinha, você tem como transportar os meus presentes para ela?
— Se realmente você quer, assim farei!
— Eu quero!
— Então vamos voltar ao seu quarto. Pegue os presentes que você quer dar!
— Mas, estrelinha, se nós não estamos aqui de verdade, como é que vamos entregar os presentes?
— Eu darei um jeito, não se preocupe!
E foi assim que numa bela manhã de Natal, uma triste menina pobre encontrou, pendurado no mesmo arame que sustentava a sua meia furada, um panetone e um lindo carrinho de bombeiros, o mesmo que ela tinha pedido a Papai Noel...




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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 26/12/2018
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