AS ESCOLHAS DE LILI

No alto dos seus sete anos, a pequena Lili, abraçada à sua almofada de joaninha, não conseguia conter as lágrimas que escorriam fartas pelas bochechas rosadas por conta de um pranto recorrente.

Ela não conseguia entender o porquê do seu amiguinho ter ido embora. A amizade entre ela e Baldo se tornara mais forte desde que a menina usava apenas uma das mãos para apontar a idade, antes disso seu irmão cuidava do bichinho, mas nos últimos anos se achava muito crescido e encontrara outros interesses deixando as travessuras do peludo sob os cuidados da irmãzinha.

Mas, por razões que sua compreensão ainda não assimilara, Baldo fora chamado para o céu dos cachorros, como sua mamãe lhe dissera. E era justamente isso o que ela não entendia. Como assim? Se havia um céu exclusivo para os cachorros, significava que eles não se encontrariam nunca mais, pois as pessoas seguiam para o céu de gente.

Com isso, ela sentia em seu coraçãozinho infantil a dor da perda do companheiro de brincadeiras e também a aspereza das incertezas.

Todas as noites, antes de dormir, a mamãe a acompanhava até a cama, apagava as luzes, mas deixava a luminosidade verde do abajur de dinossauros afugentando a presença do bicho-papão que teimava em querer se esconder debaixo da cama ou dentro do armário. A pequena recebia um beijo na testa e ouvia sempre a mesma frase: “a cura vem com o tempo, minha filha”. Ela sabia que a mamãe queria lhe dizer algo, mas como quase tudo acerca do mundo dos adultos, era difícil decifrar. Tudo o que enxergava era o vazio no tapetinho aos pés da cama, local antes ocupado pelo amiguinho que a protegia dos perigos do escuro.

E o tempo passou... e a garotinha começou a entender o que a mamãe tentava lhe ensinar. Decidida, olhou para o porquinho de porcelana sobre a cômoda do seu quarto de coloração verde-água, ela não gostava de rosa como as outras meninas, e achava o máximo ser diferente. De posse do objeto, correu até o papai, o qual olhou diretamente nos olhinhos de jabuticaba da filha, perguntando-a se tinha certeza. Balançando a cabeça para frente, ela não deixava a menor dúvida quanto a sua convicção.

O porquinho foi estilhaçado em milhares de pedacinhos, e de dentro dele Lili retirou tudo que economizara durante uma eternidade, pelo menos essa era a percepção de tempo que ela tinha, e, uma vez de posse de suas economias, saiu de mãos dadas com o papai rumo aos que desejava.

Dentro do pet shop, a curiosidade infantil percorreu uma variedade de pássaros, peixinhos coloridos, roedores, gatinhos e cães, e pela primeira vez Lili percebeu a imensa tristeza que deveria preencher a vida daqueles animaizinhos, todos ansiosos por um lar.

Ela quis correr dali, teve vontade de abrir todas as grades e gaiolas, queria encontrar uma casa para cada um deles. Porém, mesmo com a sua ingenuidade, ela sabia que isso não seria possível. Mas, mesmo assim, desejava dar um lar ao menos a um deles e, ao mesmo tempo, encontrar um novo amigo.

Depois de andar bastante pela loja, Lili parou diante de uma vitrine. Do outro lado da parede envidraçada, um filhotinho de beagle latia e abanava o rabo sem parar. A menina se encantou de imediato pelo bichinho. Com a mão direita, ela puxava a barra da camisa do papai, enquanto que com a esquerda apontava para o cãozinho.

Decidida, ela entregou o saco de moedas e um par de notas de baixo valor para o papai, tendo a certeza de que ali seguia o maior dos tesouros. Ele sorriu e seguiu de mãos dadas com a filha para o balcão e entregou ao moço do caixa as economias da pequena, juntamente com um cartão de plástico para garantir o pagamento. Era bom que ela se sentisse como a responsável pelo ato no fim das contas.

Lili não conseguiu conter a felicidade quando o pequeno beagle chegou aos seus braços. Ela tinha a certeza de que uma nova e verdadeira amizade teria início a partir de então.

No entanto, antes de sair da loja, ela percebeu a razão da euforia do cachorrinho minutos atrás na vitrine. Sentada num banco de madeira, defronte ao local, estava outra menina, um pouco mais nova que Lili, com uma expressão de tristeza e frustração.

Lili não sabia, mas a mamãe da garotinha não tinha dinheiro suficiente para levar o amiguinho para casa. Sem pensar duas vezes, ela correu até a pequena e colocou o bichinho em seus braços.

Muitas coisas Lili não sabia, mas a certeza que tivera há pouco, sobre o nascimento de uma nova amizade não se dissipara, pelo contrário, a partir daquele momento um laço forte e sincero se iniciava, não somente entre o cachorro e a nova amiga, mas também entre a menininha e Lili.

Com um semblante de conforto e felicidade no rosto, Lili olhou para o papai, que lhe retribuiu com um sorriso mesclado de contentamento e orgulho.

Pai e filha seguiam para casa de carro, e a menina ainda não conseguia entender como poderia ver o amigo Baldo novamente. Então, o papai lhe explicou que ele nunca a havia deixado, que, na verdade, ele estaria sempre com ela, e que o sentimento que nutriam um pelo outro não se dissiparia com a ausência física. Baldo estaria ao seu lado em todos os momentos, pois ela, Lili, tornara sua vida bem melhor, fazendo-o se sentir importante e necessário, e ele retribuiria esse afeto com inspiração e conforto em suas decisões, mesmo de longe.

Lili deixou escapar um suspiro e encostou a cabeça na janela do carro. Uma chuva fina descrevia linhas úmidas no vidro. O automóvel percorria a estrada que cortava a floresta quando a menina gritou para o pai parar.

Assustado, ele encostou o veículo. Lili abriu a porta e correu pela estrada para desespero do pai que correu atrás dela. À frente, a menina se abaixou e foi então que ele percebeu o que acontecia.

Lili trazia nos braços um cachorrinho, daqueles que se parecem com uma salsicha. Ele estava sujo, assustado, ferido e faminto. Pai e filha nem desconfiavam o que o pobrezinho havia passado, o fardo que precisou carregar por ter sido abandonado, as mazelas que sofrera em tão pouco tempo de vida.

Mesmo sem ouvir uma só palavra, o pai da menina já sabia o que aconteceria e, mais uma vez, teve orgulho da pequena. Lili confortava o cachorrinho nos braços, o calor que emanava tratava de acalmar os tremores não só do corpo do cãozinho, mas principalmente de sua alma.

Os dedos da menina encontraram uma plaquinha com um nome junto à coleira no pescoço do bichinho. A chuva caía forte naquele momento. Com o rosto lavado, ela sorriu mais uma vez e disse: “Você ganhou uma casa agora. Seja bem-vindo, Théo”.

Ela correu para o abraço do papai.

Do alto, no céu dos cachorros, o velho Baldo também sorria, tão ou mais orgulhoso que o pai de Lili. E, com seu idioma canino dizia latindo: “Boa menina”!

*Para quem quiser conhecer a história do cachorro Théo, segue o link abaixo. Obs.: Não é um conto infantil. Abraços!

http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6113326

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 06/11/2017
Reeditado em 06/11/2017
Código do texto: T6163561
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