Palito

Ela viu o garoto através do vidro da porta, marcado, em letras douradas, mas simples no estilo e no texto, somente Veronica Campos Sampaio – VCS Clínica – Psicóloga Infantil. Liberando a trinca quando ele bateu, com os nós dos dedos da mão direita e já dando adeusinho com a esquerda. Ela sorriu, por ser diferente que é de todos os outros pacientes na clínica, o viu escapar da mãe, solícita e um pouco aflita.

— Oi, como vai?

— Tudo bem e você? Ainda sorrindo, para satisfazer a ele e a sua peraltice.

— Estou sempre bem. Vai fazer a minha ficha? Você é a doutora!?

— Gustavo, querido – pegando no braço esquerdo dele tentando se desvencilhar – pode deixar que precisamos primeiro completar a ficha.

— É? E ela sorriu novamente.

— Sim, quer ver? E a mãe fez o ar de desagrado, mas não falhou com o garoto, mostrando, girando a base do monitor. Ele se interessou e viu o nome da mãe em primeiro. Apontou, com os dedos finos.

— Minha mãe não é a paciente, sou eu, falou resoluto apontando, chegando a pegar na tela e a mãe tentando evitar. A assistente sorriu, novamente, pelo agito do garoto.

— Concordo, falou ela. Por favor, dona Flávia, pode se sentar que eu vou terminar o cadastro.

— Pode deixar, mãe, já me entendi com ela, falou firme.

Abriu um largo sorriso, dentes bem tratados, menino esperto na decisão e na firmeza para com ela. A mãe aquiesceu, sentando-se e aguardando o itinerário que já conhece bem como começa e nem sempre como termina.

— Olha só, dona…. dona….

— Meu nome é Virginia, puxando um pouco e mostrando para ele a identificação, escondida atrás da mesa, pendurada no pescoço. Ele puxou e arremeteu.

— Entendi, você é a profissional que atura as crianças rebeldes!? Você sabe luta livre?

— Gustavo, quer fazer o favor!? Ralhou, com brandura, mas tentando deixar o garoto sem graça.

— Está bem, mamãe, já sei, estou extrapolando novamente. Tudo bem – passando a mão esquerda no braço direito dela – pode ficar calma que já estou fazendo força para me comportar e não deixar você constrangida.

A Virginia, atenciosa, já que empurrava algo para ela ver e apontando. Ela pegou no documento.

— Vejamos, vejamos, senhor Gustavo Bento Sampaio Medeiros.

— Gustavo do meu avô, apontando com o dedão da mão esquerda, indicando claramente a mãe ao seu lado. — Bento do meu avô por parte do meu pai, Sampaio por conta dela – novamente o dedo movimentando, piscando e balançando a mão direita para cima e para baixo, deixando claro o quanto a mãe é difícil de trato – e a mãe fazendo o gesto de que não é bem assim. — E finalmente, Medeiros, do meu pai, meu amigo.

As duas riram, pela desfaçatez.

— Muito bem, tudo escrito, veja, está certo? Você nasceu…. deixa ver…. ele apontando no registro geral e ela confiando e acompanhando o garoto.

— Tenho nove anos, completíssimo, falou sério. Fiz há dois meses e foi uma grande festa, mas será uma maior quando fizer dez anos. Meu pai prometeu e ele vai cumprir. Vou precisar passar de ano, sabe, estudar bastante e não ficar dependente de matérias.

— Você nunca precisou, querido. E fale somente com a doutora.

A Virginia desconsiderou, simplesmente.

— Mãe, caso eu não seja um bom menino é ela que vai me segurar, portanto, preciso fazer amizades para ela não me bater.

— Não fale bobagens, ninguém nunca lhe bateu.

Olhou firme para a Virginia, fazendo sinal com a mão direita e a cabeça, balançando na negatividade firme.

— A senhora que diz, eu vou acreditar. Bem, dona Virginia, sou um bom garoto, atencioso e as pessoas – novamente o gesto com o dedão para a mãe – sempre acham que sou malcriado. Essa doutora é muito rigorosa?

— Não, não, ela é muito simpática e adora crianças.

— Que ótimo. Então vamos fazer uma bela amizade, pode acreditar.

— Que ótimo. Ela já vai terminar a sessão e peço, por favor, para você aguardar ali, apontando a poltrona.

— Obrigado Virginia.

Se dirigiu e sentou, esparramando o corpo miúdo e pegando uma revista. E um gritinho de satisfação à seguida.

— Oba, Super-Homem e Chico Bento, melhor não poderia ser, novinhos em folha. Eu acho que vou adorar essa doutora.

A porta abriu e uma garotinha saiu da sala, olhando para ele e para a Virginia.

— Oi Pâmela, o papai já está chegando, meu amor.

Ela, ressabiada e aparentemente mal-humorada, sentou-se. Ele ofereceu uma revista e ela recusou.

— A doutora bateu em você!?

— Não.

— E porque você está triste?

— Eu só falo para a doutora.

— Entendi. Mas eu acho que é porque você não gosta de vir ao consultório. Sabia….

— Você sempre fala com pessoas desconhecidas?

— É esse o seu nome, pessoa desconhecida?

Ela olhou firme e sorriu um pouco e ele continuou.

— O meu nome é Palito e o seu?

— Palito!? Que nome estranho, por que?

— Meus amigos me chamam assim, na escola. Vou ser, ou melhor, já sou, doutor.

— Mesmo? Do que você é doutor, falou, precisa e rindo da situação. Você não tem nem músculos para ser gente, quem dirá doutor.

— Gostei, adorei, agora já sei que você além de mal-humorada é malcriada, salientou.

— Gustavo quer fazer o favor!?

— A rá, sabia, não podia ser Palito.

— Doutor Palito, por favor.

A Virginia anunciou a ele e a mãe puxou.

— Pode deixar, já vou, preciso terminar esse assunto com essa garotinha.

— Sou bem grande, maior que você.

— Todo mundo é maior do que eu, levantando os braços e mostrando os músculos.

Um arremedo deles. Ela riu, ele atiçou e ela pegou no braço esquerdo e apertou o cambito. Ele riu, satisfeito, ela também.

— Você vai vir quando a próxima vez!? Largou do braço. — Eu gostei de você, meu nome é Pâmela. Prazer.

— Prazer todo meu.

Levantou-se, finalmente, abraçando e beijando a menina no rosto. Ela riu, satisfeita, ele também. E a doutora esperando na porta. No olhar e incredulidade para a Virginia e para a espantada mãe, que, chegando mais perto ele a fez parar na porta.

— Até mais, Pâmela, oi doutora Verônica, tudo bem? Posso entrar, eu primeiro?

— Sim, querido, por favor.

— Pode deixar, depois conversamos. A menina sorriu e o garoto deu uma piscada para a mãe e depois para ela.

— Comporte-se.

Ele levantou os dois braços como clamando por algum ser divino e a psicóloga riu. Percebeu e fez o gesto novamente. Ela fechou a porta, a mãe voltou a sentar-se e a garotinha lhe questionou.

— O seu filho é sempre assim?

— Todo o tempo, com enfado na voz.

— Minha mãe e o meu pai…. parou.

Algo ficou no ar e os detalhes da vida da garotinha é segredo da doutora.

O pai apareceu na porta e ela levantou-se, mas triste, sem abrir a boca e sem devolver o adeus para a Virginia e ele, com gesto semelhante, lá se foram.

Ouviram uma gargalhada, vinda do consultório.

— Gustavo!! Falou e levantou-se.

— Pode deixar, ela sorriu para uma criança pela primeira vez e agora gargalhando. Seu filho deve ser um grande comediante.

— Você não imagina o quanto ele o é. Só apronta, a doutora é a quinta terapeuta que levamos. Ele não come e não dorme direito, tem um fogo nas ventas, na boca e no rabo… desculpe, perdi a compostura, mas uma alegria infinita todo o tempo. Não para e não parece que vive bem assim, magro desse jeito. — Gustavo!! Vou entrar, deve estar acontecendo o mesmo que em outros consultórios. Ela levantou-se e a fez parar.

— Não se preocupe, já vi que ele é um ser inteligente, perspicaz. Conte para mim, sou auxiliar dela, mas também sou psicóloga fazendo estágio, devolvendo a afronta. Sei o quanto e o que pode acontecer com crianças rebeldes e ele está longe dessa possibilidade.

— Está bem, espero que tudo dê certo mesmo.

— Pode deixar, fique calma.

Novas risadas, movimento, batendo na porta duas vezes e parecendo ele correndo dentro do consultório. A Flávia levantou os olhos para o teto, respirou fundo. Depois, minuto a minuto, no relógio até completar os quarenta e cinco e nada de terminar a conversa. A Virginia atendeu o telefone e escutou por quase um minuto e definiu.

— Entendi, pode deixar que aviso a doutora. Tudo bem, remarcamos para a semana que vem.

Novas batidas na porta e movimentos. Mais dez minutos e nada. Ela chamou pelo interfone e quem atendeu foi uma mulher em franca atividade na alegria.

— Já vamos sair, rindo muito. Esse garoto é o máximo. Onde você achou essa criatura?

— É a doutora Virginia!? Ei, pode deixar, está tudo bem, estou ensinando para ela um monte de coisas.

A voz infantil, acelerado e se movimentando, porque ouvia de longe e nova batida na porta.

— Está bem, deixando o fone no gancho.

Mais dez minutos e uma mulher sorrindo, abriu e o fez aparecer. Ele levou a mão à frente e desejou.

— Felicidades, doutora, foi ótima a sua companhia.

— Obrigada, querido, então, até terça-feira, combinado?

— Certo, pode deixar que se a minha mãe não puder vir eu venho de Uber ou taxi, batendo no peito esquerdo e piscando. — Já podemos ir, mãe?

— Sim, podemos, com ar de interrogação para a doutora.

Já havia feito o pagamento, acertado tudo e não sabe, realmente, se vai vir com o garoto, pelo preço da consulta. Saindo, agradecendo e elas dizendo o sim com a cabeça, na alegria. Depois da porta, correu e apertou para a vinda do elevador. E ouviram o célebre.

— Gustavo!!! Quer fazer o favor? Obrigada. A Flávia se voltou e as duas disfarçaram, se escondendo. — Você me envergonha, sabia?

— Mãe, eu fiz um acordo e preciso vir na próxima semana para uma sessão.

— Posso saber que acordo? Foi a última tentativa de achar uma profissional que contivesse você. O que foi, o que é isto?

— Dinheiro!!! Apresentando e ela confirmando.

— De onde você tirou esses cinquenta reais!?

— Da doutora. Agora eu sou assistente dela.

— Não acredito?! Vou devolver…. ela tentou e ele a parou, segurando na barriga com as duas mãos e impedindo. O elevador chegou e ela foi empurrada e o mesmo fechou, depois que ele apertou o térreo.

— Calma, mais essa agora. Ele demonstrou que corre cem metros em nove segundos e oito décimos. Confirmou que o tanto que fala a maioria é mentira. Que já é doutor, tem um certificado que o pai fez pelo computador e me mostrou, com pompa, no celular. Doutor Palito – médico naturalista e nutricionista. Para de rir, é verdade. Me mostrou receitas para eu ficar mais magra e com mais saúde. Contou as várias atividades que faz na escola, no jornalzinho dela, com piadas e brincadeiras. Tem dinheiro porque compra e vende figurinhas, balas, abajur de palitos, aluga brinquedos e enfim. Tirou uma carteira com o registro geral e falando aos borbotões e mostrando o número do CPF do pai, a fotografia e a assinatura: GBPalito.

Riram as duas.

— E espera a maior, tornou-se meu ajudante e com desconto em nossas conversas, me obrigando a lhe dar cinquenta reais pela sessão e informações que prestou para mim durante os quarenta e cinco minutos. Assim ó, o que fez. Deitou-se, tirando antes o sapato, os pés e as mãos esticados, com elas duas atrás da cabeça e informando como foi em outros consultórios.

— Para, Verônica, nunca ri tanto na minha vida. Tem mais!?

— Tem muito mais, agora vou tomar água em copo grande para acalmar.

— Oi pai, amigão, entrando no carro atrás e batendo as mãos. Ela brava. — Oi, Bilú, bilú.

— Não sou Bilú, bilú.

— Gustavo, quer parar de aborrecer o seu irmão!?

— A senhora é que chamava ele assim, quando eu tinha três anos.

— Eu sei, ele era criancinha e os pais…. quer parar, Rogério, vamos embora. Você não devia estar trabalhando!?

— Já fechei o mês, faturei bem.

— Não esquece o meu.

— Gustavo quer fazer o favor de apertar o cinto?

— Viu, pai, vou vir na terça-feira, já negociei com a doutora.

— Meu garoto!

— Rogério, quer fazer o favor, você sempre faz assim e ele não para de me constranger com as pessoas. Não sei o que aprontou mais lá dentro e pegou cinquenta reais com a doutora.

— Meu garoto! Está bem, desculpa.

— Não sei onde eu errei.

— Na noite de núpcias.

O pai começou a rir, ele também.

— Oi, Bilú, bilú, bem amarradinho aí na sua cadeirinha!? — Meu garoto!

O esperto, arreliando o pequeno de seis anos tentando chutar e ele evitando. Eles dois na frente rindo e o Gustavo atrás olhando para fora, indo e vindo.

— Meu garoto!!!