Bernardo o Nada e Benício
por Gustavo Pilizari
-Porque está chorando?
(ao longe, no horizonte, um casebre esfumaçado em tons palhas transmite a mais calorosa paz de um abraço de vó...)
- Sabia que você não existe no futuro?
- Sabia que não existimos no passado?
(Bernardo não pode conter o traçado dos cantos de seus lábios que se tornaram longos riscos após a fala de Benício...)
- É verdade Benício, nós não existimos no passado, não é?
- Sim...
- Então quer dizer que o futuro é o nosso passado ao contrário, não é?
- Sim, Bernardo...
(ambos sentados num quieto banco despercebido entre secas árvores, com seus aconchegantes casacos escuros, chacoalham em seus corpos quase impedidos de mobilidade por tão pesado vestuário que os envolve...)
- Quer dizer que a gente já esteve morto e nem sabia?
(Bernardo não contém a face de admirada inquietação)
- Pode ser que sim... de alguma forma deve ser isto mesmo...
- Eu não me lembro de nada quando não era nada, isso é muito engraçado...
(ambos cruzam as pernas e posicionam os cotovelos apoiados nos joelhos; suas mãos seguram os rostos que se voltam na linha do horizonte perdido... Benício cerra os olhos por momentos em busca da descoberta do ser que não é...)
- Eu queria muito saber por que os adultos falam tanto do nada se o nada é nada. O que será que tem no nada de tão importante assim?
- Acho que o nada é um jeito que eles encontraram de dizer alguma coisa do nada... é como se dizendo algo do nada isso fosse preenchido, você não acha?
(Benicio e Bernardo recolhem seus olhos para dentro de si...)
- Mas para a gente falar do nada a gente não deveria ver o nada pessoalmente? Não dá pra falar de algo se a gente não vê... se a gente não vê então isso não existe, não é assim?
(as sobrancelhas formam altos riscos curvilíneos... ninguém ao redor nesta tarde violeta de domingo... farfalham galhos cheios de secas folhas; o vento assovia... os cabelos e cachos feitos molas de Bernardo parecem dançar frente aos seus olhos...)
- Será que o nada fala das coisas do nada?
- O nada não deve ter voz, porque se tiver, então não é nada, é alguma coisa...
- Eu já fui um nada, e agora sou alguma coisa, e seremos uma nada no futuro... você será um nada no futuro, Benicio... seremos ausências, não é?
- Se a gente aceita que o nada não existe, então quer dizer que sempre somos alguma coisa, não seria isto?
- Eu estou achando que a gente é sempre alguma coisa; eu acho que o nada só existe quando existem dois para discutirem sobre isso, você me entende?
- Sim... se a gente estivesse sozinho aqui tudo isto não iria existir, não é? É a outra pessoa que me causa a ausência e o nada, acho que é isso... é uma questão de inventar palavras e de relacionar as coisas...
- Eu ainda acho que onde o nada existe, nada existe; acho que é isto!
- Nunca vamos chegar ao nada, porque se a gente chegar então num é nada, é alguma coisa, e se esse nada pode virar alguma coisa, então este problema não existe...
- Eu acho que é tudo uma questão de palavra... o nada é uma palavra, só isto...
- Talvez o nada seja apenas um lugar onde as palavras não existem; deve ser isto mesmo...
(a pintura celeste é interrompida por dois corpos sentados despreocupados num seco gramado... uma fraca voz chama mansamente pelos meninos de volumosos cachos caracois...)
- Será que quando a gente estiver na inexistência do futuro alguém vai lembrar de chamar pela gente?
- Eu acho que não, Bernardo... quando estivermos lá, ai está o nada; lá é o reino do nada... no nada não se chega nunca, vão esquecer da gente...