Com órdi de quem...?
O Vicente do Dico - ou era a sua mulher, Lia do Casquilho, que era do Dico? - era nosso vizinho de cerca, naquele desbrumado Brumado dos anos 50. Como nossos pais, o casal do Dico trabalhava também na fábrica de tecidos, e empatava conosco em cultivar o quintal, ter cisterna, casinha de terreiro, forno e galinheiro, além da fazeção de crianças.
No que o Vicente sobrepujava a gente era na parreira de uva que dava muito mais cachos, que chegavam a amadurecer pelo tempo do Natal, sem ninguém tocar, até ele lá chegar de alicatinho à mão para a colheita na hora certa; nas varas de pescar que, zelosamente ele preparava, e na garrafinha de café, num vidro de Biotônico Fontoura, ou de Leite de Magnésia de Philips, que ele botava no bolso traseiro da calça quando voltava do almoço pra fábrica.
No que ganhávamos deles era nos globos de vidro esverdeados, de teto - que eram 3 - e na cortina de plástico que, também, papai trouxera de Belorzonte, que, separando a sala da copa, com a motivação duns pinheiros depois dum alagado pós chuvarada, mantinha sempre o cheiro de loja. E era meio caroquenta, dando mais gosto em lhe passar a mão.
Papai tinha um chapéu de couro, um Ramenzoni, dum marron-avermelhado, que usava de quando em vez, porquanto Vicente, se o seu tirava, era raramente, quiçá para cobrir alguma calva impenitente. E era de aba mais curta, para o cotidiano batente.
Embora colegas de escola de ambos os lados da cerca, Bebel com Onésimo e eu com o Celinho, não víamos entre os pais muita intimidade. Talvez fosse em razão do tempão que a "fapa" lhes consumia, noite e dia.
Não sei porque cargas d´água, ou da própria rubiácea mesmo, eu tinha uma vontade mórbida de ter uma garrafinha daquelas do Vicente - com café quente. Mas minha cobiça maior eram as suas varas de pescar, de cana-fístula, que ele se jactava em preparar, cumprindo todo o ritual de as sapecar sobre brasas quentes para elas melhor resistirem às fisgadas impertinentes.
E o Vicente, sistemático, não parecia experimentar aquela geral descontração de papai. Ai de quem mexesse nos seus petrechos sem a sua autorização.
A última vez que ouvi sua voz, pouco antes de nossa mudança definitiva de Brumado para Pitangui, em junho de 58, ouvi-o esbravejar com o mundo todo, ao indagar:
- Com órdi de quem, que tão mexeno nas minha vara?
Ainda bem que por cobiça só, e a sós, eu só pecara - não pescara. E nem ao menos sapecara...