O caminho para a escola

O caminho para a escola

Ana Maria Maruggi

Era quinta, ou quem sabe quarta-feira de um mês quente e desconfortável. O chão estava seco e poeirento. Lembro-me pouco do todo, mas o pouco que lembro tornou-se inesquecível.

A saia pregueada azul-marinho que chegava aos joelhos fazia conjunto com a blusa branca alvejada no anil, e nos pés as meias três-quartos protegidas pelo Conga branco. O cabelo longo estava preso no rabo de cavalo, alisado com a brilhantina do pai.

Na pequena maleta iam um caderno de caligrafia, a cartilha Caminho Suave, um lápis, apontador e borracha. Não usávamos caneta, às crianças restavam lápis coloridos além dos pretos. Todos bem apontados, sempre.

Cruzada ao peito ia a lancheira de plástico Trol com suco de limão e maçã. Era sempre o mesmo lanche.

Pelo caminho outras crianças seguiam para a única escola, e eram muitas. Todas vestiam o mesmo uniforme e as meninas, como se fosse modismo, quando o cabelo era comprido usavam rabo de cavalo ou maria-chiquinha e franja curta na testa. Não havia o hábito dos brincos e nem pulseiras. As unhas deviam estar limpas e mãos bem lavadas. As professoras examinavam nossos cabelos para combater a infestação de piolhos, examinavam também nossas orelhas, unhas e pescoço. Tudo tinha que estar bem limpo.

Eu caminhava devagar sem pressa, sabia que o tempo era largo. Pelo caminho apreciava as florezinhas que brotavam a esmo pelos terrenos baldios que tinha que cruzar. Via os passarinhos bicando o chão em busca de comida e me detinha vendo-os alçar voo. Mas, naquele dia o que me atraiu estava no córrego. Era um pequeno córrego, que ladeava os terrenos, com vasta vegetação nas beiradas, apesar de haver recomendação restrita de minha mãe para me manter longe dele eu ficava à examiná-lo. É interessante como me lembro do ruído da água correndo por entre as pedras. Era um discreto e contínuo chuá em sussurro, de modo que precisava atinar os ouvidos para entendê-lo. Parei para ouvir, e me deixei embalar pela imagem que o pequeno canal oferecia. De onde estava via os galhos se enroscando pelas bordas aqui e ali numa louca briga para continuarem viagem.

Nesse dia permaneci parada por não sei quanto tempo. Interessou-me acompanhar a folha do abacateiro que se desprendeu do alto, plainou no ar balançando numa dança arisca, até tocar a água. Ela parecia feliz por estar vivendo fora da árvore, era como se tivesse conseguido crescer e se tornado adulta podendo agora viver a própria vida. Assim como eu que já ia sozinha, sem a mão de minha mãe, para a escola. Testemunhei a dificuldade da folhinha em seguir adiante interceptada por uma pedra robusta e pontuda, e depois um galho seco que já havia bloqueado o caminho de muitas outras plantas. Devem ter combinado que a impediriam de seguir o destino que escolheu. Coitadinha! Mas, ela parecia tão valente e destemida! Acocorei-me. E lá estava ela. Rebolou, rebolou até se livrar. Já estava cansada quando se desenroscou. E quando conseguiu se desvencilhar dos obstáculos a ondulação da água a empurrou para a beirada e lá ficou lutando para se soltar. Estava exausta. Confesso que me passou pela cabeça ajudá-la, e para isso até já havia conseguido uma vara com a qual a empurraria. Mas lembrei do dedo em riste de minha mãe: “Não chegue nem perto do córrego!”. Torci imensamente para que ela conseguisse, pois seguiria junto com outras que passavam soltas, em velocidade, pelo meio do canal. Por que ela escolhera andar pelas beiradas? Eu mesmo iria pelo meio onde havia mais água que me levaria para mais longe. Pensei de novo em empurrá-la, mas logo a vi livrar-se e enveredar pelo meio do rio, como eu havia dito. Uma felicidade tomou conta de mim. Ela podia ir agora para onde quisesse. A água corria solta e a levava ligeiro. Corri para vê-la passar lá adiante numa clareira, e lá esperei. Esperei, e nada. Onde estaria a folhinha do abacateiro?

Nesse instante ouvi a voz de Elza me chamando:

— Ana? Anaaa! O que você está olhando?

Era minha colega da escola, com quem sempre dividia a maçã.

— Uma folha caiu do abacateiro – disse apontando a enorme árvore que subia além, muito além de nossas cabeças – E está com dificuldade de nadar. Vi quando ela se prendeu ali – apontei o lugar – e se soltou, mas agora perdi a folhinha de vista. Estou esperando ela passar aqui.

— Ah! E não passou ainda?

— Não. Será que está enroscada de novo?

— Ah, não, coitadinha! Ela é pequena? – resmungou chorosa minha colega.

— É ! – respondi tristemente.

—Ah, coitadinha! Precisamos ajudá-la! – disse eufórica.

Eu não saberia como ajudar. Mas, Elza sabia.

Ela parecia mesmo preocupada também com a pobre folhinha que ainda não sabia viver longe da árvore. Elza largou a maleta e a lancheira aos meus pés, tirou o Conga e as meias, e de repente a vi afastando o mato para entrar no córrego.

— Não. Minha mãe disse que é perigoso, não entre aí! – gritei.

Mas ela não me ouvia e avançava escorregando pela beirada. Já tinha os pés no fio de água quando soltou a touceira de mato onde se segurava.

— Olha, tô vendo ela. Ela está aqui na beirada. Tá presa no mato! – gritou de lá.

Senti alívio em saber disso.

E mais ainda em ver Elza derrapando para subir a borda lamacenta. Ofereci-lhe minha mão, que segurou com força, e ela deu um pulo para perto de mim. Trazia consigo a nossa folhinha. Ela estava salva.

Notei a saia suja de lama e ela olhou para a saia. De fato ela não se importou.

— Digo pra professora que caí. – Disse e sorriu. Depois continuou num só fôlego - Vamos ajudá-la. Vamos colocar esta folhinha no córrego em frente da escola, lá não tem mato e ela não vai enroscar em nada.

Esperei minha amiga se recompor enquanto eu segurava a folha do abacateiro. Tinha finalmente oportunidade de examiná-la de perto, verdinha e firme. Estava limpa e parecia muito forte. Estava realmente salva. Meu coração parecia transbordar de alguma coisa quente.

Seguimos felizes para a escola, nós três.

ANA MARIA MARUGGI
Enviado por ANA MARIA MARUGGI em 12/10/2016
Código do texto: T5789678
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