Angélica: Apenas anjo

Lembro-me vagamente dos cômodos de minha antiga casa. Minha mãe, de forma sucinta, passeava por eles de um modo que parecia pairar, e anunciava o chá da tarde pontualmente às 16h. Dona Maria, nossa criada, era a preta mais bondosa que pude conhecer; avisava-me baixinho, com antecedência dos biscoitos de linhaça, fazendo-me correr à cozinha para furtar-los rapidamente (e não ser pego por minha mãe, que aplicaria-me bons modos). A chuva era torrencial e ficou grudada em minha memória como os musgos que eu insistia tirar dos meus sapatos. Meu pai, chegava sempre atrasado, e recebia olhares de minha mãe que pareciam fuzilar seu corpo todo. Ele era jornalista e vez ou outra precisava correr para estar a pronto da informação. Pois bem, todos os fatos que antecedem a tarde do dia 23 são como um prefácio de um livro qualquer. Tinha eu 8 anos, aparência mesquinha e magricela e algumas cicatrizes no joelho que denunciavam minha fama de bagunceiro. Naquela tarde, Maria atrapalhava-se com as exigências de minha mãe e eu esperava um tanto irritado no parapeito de nossa varanda. Observei como jamais havia feito todas as casinhas de nossa rua: eram graciosas e davam um ar tradicional à cidade e as árvores pareciam conversar entre si, talvez balbuciando às conversas de um casal de namorados que sentava toda tarde no banquinho da praça, ou quem sabe repassando o último escândalo da vila perpendicular a nossa. Os passarinhos brincavam e rodeavam a igreja sede, que sacudia seus sinos e divertia os bichinhos. Pude ver, naquele instante, uma figura pequenina que aproximava-se da casa recém desocupada, com dois estranhos que supus ser seus pais. As tranças da menina chocavam-se ao final, fazendo o encontro perfeito dos seus fios de cabelo. Sua pele era branca como giz, e os olhos eram castanhos, bastante arredondados e sutis. Ela era encaminhada à sua futura casa (que eu também imaginei) e parecia bastante feliz com a nova fase da vida. "Parece gentil de minha parte apresentar-lhes a vizinhança e dar boas vindas, não?" Pensei entusiasmado, correndo para fora de casa aos gritos de minha mãe, repreendendo-me. "Volto em 15 minutos, prometo" gritei já do outro lado da rua, chegando ao ponto almejado.

"Olá" sussurrei, pra não assusta-los "meu nome é Miguel, e eu moro na casa 28"

"Tudo bem Miguel? Somos seus novos vizinhos" respondeu-me a senhora alta e forte, aparentemente simpática e comunicativa. Não era a resposta de quem eu esperava, então olhei rapidamente para a menina que parecia não ligar para as minhas investidas, seguida por seu pai que avaliou-me de forma intimidadora.

"Estamos um pouco apressados para arrumar as coisas, você poderia aparecer outro dia aqui para brincar com Angélica"

Angélica... enfim, o nome da mocinha. Era um nome que condizia com sua aparência angelical, e bem dócil para sua fisionomia.

"Certo. Até mais então" sorri, mostrando todos os dentes possíveis e até mais, caso minha boca suportasse tanto. Corri de volta para casa e contei mentalmente que fora menos de 3 minutos distante dela, e que isso ajudaria-me com minha mãe. Ouvi palavras não muito apreciativas, mas logo esqueci quando avistei a bandeja de biscoitos que aguardava-me na bancada.

Não apareci na casa de Angélica nos dias que se seguiram, entendendo que o convite feito pela mãe era mais para ser simpática do que realmente por almejar minha presença. Isso não significa que eu não tenha espiado seus afazeres diariamente. Ah! Como me divertia... Meus pensamentos eram voltados para Angélica, entretanto não impediam-me de avaliar minuciosamente os seus responsáveis. Nutri o carinho que observei de sua janela, dei nome aos nossos futuros 10 filhos de acordo com sua quantidade de bonecas. Contei as estrelas e destinei o nome de Angélica para todas elas, imaginando que Deus não se importaria, por concordar que mereciam ser comparadas a pessoinha tão adorável. Eu não sabia as leis que regiam a vida de um adulto, tão pouco como era ter uma casa de verdade, um carro de verdade (e não os de mentirinha que eu ja conhecia de cor), mas algo dizia-me que eu não precisava saber, que a vontade pura e inata bastava. E eu profetizei: "Um dia casarei com Angélica! Que os anjos digam amém". E não é que eles disseram? Pois casei.

Isadora Franco
Enviado por Isadora Franco em 29/07/2016
Reeditado em 05/07/2018
Código do texto: T5713317
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