Tudo Por um Par de Asas
A principal fonte de renda da fazenda era a produção de ovos. O problema é que todas as galinhas estavam morrendo misteriosamente e não se achava a causa. Uma das galinhas, a mais antiga e experiente de todas procurou e encontrou uma solução. Para não morrer abandonou o galinheiro à noite e foi para a floresta. Mas assim que chega dentro da mata sente-se mal e pede auxílio. Um pica-pau que por ali voava escutou os seus gemidos e desceu para socorrê-la.
- O que está acontecendo com você? – quis saber o pica-pau.
- Meu amo está passando por necessidades com sua família. Não há mais produção de ovos, pois que todas as galinhas estão morrendo sem uma razão aparente e eu preciso ajudá-lo. Só que estou me sentindo doente, também.
- Vou ver o que pode ser feito. Só que, em primeiro lugar é preciso curá-la.
- Será que meu caso tem solução?
- Se é sobre seu amo que está falando vamos pensar a respeito. Quanto a você, não se preocupe. Nós aqui da selva não conhecemos isto a que vocês chamam de doença. Espere um pouco.
Deu um giro pelos arredores e logo estava de volta com uma poção de ervas. A galinha bebeu e curou-se instantaneamente. Feliz da vida convidou-o para passearem na cidade grande. O pica-pau aceitou, mais por compaixão pela velha galinha que nunca havia deixado a escura prisão de um galinheiro. Como não sabia voar ele improvisou uma cesta com fibras da floresta e carregou-a pendurada em seu bico durante horas e horas. Até que, não se aguentando mais de cansaço, desceu para recuperar suas energias. A galinha percebeu que o pica-pau fizera de má vontade aquele passeio. Ela ficara extasiada por um panorama que nunca havia presenciado. Desejosa de repetir aquilo outras vezes e com inveja da capacidade de voo do pica-pau desejou suas asas. Aproveitou enquanto o outro dormia e lhe cortou as duas asinhas.
Ao acordar, não vendo a galinha e sentindo que não conseguia voar saiu andando pela cidade em busca da fazenda descrita pela perversa. Encontrou-a acamada, novamente doente, mas desta vez toda quebrada pelas quedas que sofrera tentando alçar voos com as asas do pica-pau. Pediu perdão pelo que havia feito e, sentindo que ia morrer chamou o amo posto que, como último desejo, queria que o pica-pau encontrasse abrigo naquela casa até que suas asas novamente crescessem e ele pudesse retornar voando para a floresta.
O pica-pau perdoou e ficou na fazenda. Vendo a miséria em que estava a família, sentiu vontade de ajudar. Assim que lhe voltaram as asas ele foi de fazenda em fazenda convidando todas as galinhas a que ajudassem, com pelo um ovo cada, a erguer novamente a produção do pobre homem. Elas não aceitaram e o pica-pau então teve uma ideia. Mostraria a elas o belo da cidade grande voando com uma a cada dia em seu próprio bico. Elas exultaram de alegria e todas aceitaram a troca.
Correu tudo na mais perfeita harmonia. Em pouco tempo a fazenda voltou a prosperar e nasceram ali pintinhos felizes e saudáveis para a nova vida. Só que a vida do pica-pau transformou-se num verdadeiro inferno logo em seguida. Elas queriam que ele continuasse com os passeios e elas continuariam fornecendo os ovos e até em dobro se ele assim desejasse. Só que não precisava dessa ajuda e o pica-pau detestava aqueles voos monótonos e repetitivos. Então começou a perseguição.
A cada pouso seu para beber uma água, brincar num tronco de árvore ou descansar em um córrego, num instante se rodeava de galinhas exigindo que as carregasse e apontando-lhe tesouras afiadas caso lhes fosse negado o passeio. A saída era fugir e voltar para os céus. Não mais conseguia vir cá em baixo; tinha que dormir no alto dos galhos, no interior dos troncos e comer e beber lá por cima mesmo. Passou a ter terríveis pesadelos noturnos em que procissões intermináveis de galinhas rodeavam-no, cada uma arrancando dele uma pena. Até que, não existindo mais penas para serem arrancadas surgiam com facas pontiagudas e afiadas para fazerem dele um assado de pica-pau. É quando ele despertava suando e cheio de tremedeiras.
A neurose levou a ave a tal ponto que procurou um psicólogo. Como solução foi-lhe aconselhado a se disfarçar de galinha. Assim ele fez. E conseguiu um pouco de paz. Achou que indo para a casa do homem agora próspero este conseguiria ajudá-lo. Foi e se meteu no galinheiro. Numa noite, enquanto ainda cochilava, percebeu que duas mãos o retiravam do seu cantinho. Pensando ter sido descoberto pelas companheiras de poleiro, enganou-se. Era o dono que o levava para ser o almoço do dia seguinte. Ao ver o enorme facão já bem próximo de seu pescoço, protestou arrancando o disfarce:
- Ei! Não faça uma loucura destas. Não está me reconhecendo? Não mostre essa cara! Sou eu mesmo; o que levantou toda a sua produção de ovos.
O homem, embora o reconhecendo, não acreditou tanto naquela história de neurose e pediu a ave que deixasse a sua residência por medo de que lhe aprontasse alguma as suas galinhas. Contudo, por já ser tarde da noite, permitiu que passasse ali até o amanhecer. Mas, por prevenção colocou-o na casinha do cachorro; o que seria mais seguro, exceto para o cachorro que precisou ceder o seu espaço. Ao retornar ao galinheiro para garantir a sua refeição o homem se descuida e deixa escapar algumas galinhas. Ao passarem em frente à casa canina reconhecem o pica-pau, agora sem o disfarce.
Para não haver confusão, nem mortes desnecessárias e tampouco arranca asas fez-se a reunião que decidiu pela inocência e pela paz do infeliz pica-pau. Mas não seria a troco de nada. As galinhas não perderiam aquela chance de realizarem suas fantasias e a pobre ave acabou concordando em levá-las ao passeio diário para conhecerem o céu e as cidades. Elas tanto perturbaram que acabaram conseguindo o que tanto queriam do infeliz. Ele já anda cansado de tanto sobe e desce. Mas ao menos continua com suas asinhas intactas e, como vingança, quando alguma não segue as regras do voo vai para a panela e essa é a parte que ele mais aprecia.