As canicrinha verde

Eram tempos precedentes à alfabetização, e essa era a forma que a gente terá chamado aquelas canequinhas esmaltadas, meia dúzia, com que mamãe nos mimoseou numa tarde ainda ensolarada dos anos cinquenta, segunda metade.

Comprara-as provavelmente na venda do Zé Chave, que, situada próximo da fábrica de tecidos onde mamãe trabalhava, costumava vender do bacalhau quaresmal à corda de nome igual. Era relativamente bem surtida para um povoado nem tanto isolado como o vieux Brumado. Afinal, tínhamos então a ferrovia, a rodovia e, pra alguma emergência quase sempre recurso havia. A caminhonete Ford, da fábrica, ou o jipe de um doutor Dito ou doutro, o Zé Jacinto, se lhes não minto.

Mas qual não foi a festa que fizemos pra dar boas-vindas às canequinhas, que eram de tamanho médio, tão igualinhas, que buscar diferenciá-las não tinha remédio, e até levava ao tédio. E nos contentamos de cada um ser dono daquela propriedade coletiva, desde que por aquele patrimônio zelássemos, sem as deixar cair e as lavando sem a preocupação de as fazer luzir. O esmaltado era bem delicado e nos merecia todo o cuidado. E nem éramos seis ainda, assim que sobrava uma delas para o aparecimento de mais um rebento, e que por ironia da vida e lida, veio pra se chamar Aparecida.

O chocolate ainda era distante de nós - embora na casa de vovó já nos exercece fascínio atroz - mas podíamos contar com o café com leite de quase todo dia, algum mingau de fubá, sem deixar a barriga vazia. E nelas até, quem sabe, fazer jacuba se poderia. A receita era de vovó Inhana, que já se nutrira dessa iguaria que, quem tomasse, tenho minhas dúvidas que a repetiria...

E, assim como o faqueiro de aço inoxidável nos seguiu por décadas a fio - e ainda hoje resta do conjunto uma colher, que deixa mamãe orgulhosa - as canicrinha quiria tamém durá...mas ah, quá, o esmalte e o nosso desmazelo infantil aquele sonho ruiu.

Mas não é que dia desses mamãe uma amostra me exibiu: a derradeira delas, embora descascadinha e já sem asinha tava lá, guardadinha na sua cozinha...

Vou querer chocolate nela, mesmo se minha mão também péla...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 03/05/2016
Reeditado em 03/05/2016
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