Mamonas Assassinas
Sou um pequeno sabiá de peito amarelo e penas brilhantes que veio a esse mundo para usufruir das benesses divinas, entre elas a liberdade de poder atravessar o céu de um lado a outro sem me preocupar com meninos travessos que escolhem como brincadeira ou passatempo atirar pedras em nós, frágeis e indefesos pássaros. Vou narrar um fato que me aconteceu há poucas semanas que, por pouco, não me tira a vida que Deus me ofertou com toda Sua boa vontade e Seu grande amor, tanto pelo homem, pelas enormes baleias como por nós, minúsculos e indefesos seres.
Daqui, de onde agora narro esta história que foi real do princípio ao fim, não corro o risco de sofrer acidentes graves como os o que sofri na cidade grande Penso que em tudo há vantagens e desvantagens. Enquanto no campo, onde vivo intensamente o esplendor da natureza divina, mas, por outro lado, vivo sendo assaltado pelas atiradeiras inevitáveis aonde quer que eu vá, nas grandes e populosas cidades, não corro esse perigo. Não são tantos os meninos que usam atiradeiras hoje em dia. Suas diversões são muito mais modernas, felizmente para nós. O que me mata é a poluição. Ela afeta meu pequenino pulmão, tira minha energia porque me escasseia aquele ar puro das matas onde fui criado e que é minha paixão maior. Mas pode haver perigo muito maior dada a falta de matas que, além de um suicídio para a vida do homem, para nós representa a falta de um esconderijo ideal e seguro.
Outro dia passei, em voo rasante por cima de um grupo de meninos que brincavam de bola numa ruazinha entre dois morros. Ali é uma comunidade pobre. As casinhas são quase coladas umas às outras e, ao longo das alamedas ficam as barraquinhas dos ambulantes. As senhoras transitam comprando, enchendo suas sacolinhas com as frutas, hortaliças e outras bugigangas que vão adquirindo. As árvores são poucas ao redor, mas, entre um voo e outro eu parava em um galho para observar o movimento e esperar uma chance boa de descer e bicar alguns pedaços de frutas que se espalhavam em volta das barraquinhas.
A fome era tanta e eles me pareciam tão apetitosos que eu desci na primeira oportunidade. Quem iria se importar com a presença de um passarinho mordiscando casquinhas de goiaba? Assim pensando, desci célere, em diagonal e, quando me vi, já estava em meio àquele paraíso adocicado. Distraído e feliz, não percebi que, bem próximo de mim, havia um menininho, um pirralho nos seus cinco anos, se muito. Ele se grudava à saia da mãe que escolhia uns mamões sobre a bancada. Os pássaros são, geralmente ágeis e muito espertos para se desviarem de uma ameaça repentina e eu não sou exceção. Só que não maldei a ocasião e paguei por isso. O menino, como sem ter o que fazer naquele momento, ao me perceber lançou, sem pensar duas vezes, a casca da banana que acabara de mastigar, com toda sua força em minha direção. É óbvio que ele o fizera com intenção pois, do contrário, ela não teria vindo com tamanha força. Não me acertou, felizmente, mas bateu exatamente onde eu estava, espalhando tudo ao meu redor num alvoroço assustador. Apavorado, bati asas e abalei dali, largando para trás minha refeição.
Eu já estava desde o início da primavera sobrevoando a cidade. Longe de minha família. Ao contrário dos humanos nós, os pássaros, somos, desde tenra idade, independentes para irmos aonde a intuição nos levar em busca de comida. De árvore em árvore, de galho em galho vou encontrando minhas porções, mas nem sempre é assim. Há lugares tão escassos de vegetação e tão poluídos que chego a me sentir mal nos curtos minutos em que ali me encontro. Somos sensíveis demais às impurezas do meio ambiente. O mínimo descuido pode-nos tornar doentes. É por isso que meus amiguinhos relutam tanto a ir comigo para as cidades em busca de aventuras. O campo é maravilhoso, a beleza de alguns sítios é de tirar o fôlego. Mas tudo que é rotineiro acaba cansando e é por isso que, às vezes, me encontro por lá.
Qual não foi minha surpresa quando, ao despertar numa fria, mas linda manhã que deixara as folhinhas do arbusto em que eu passara a noite umedecidas pelo sereno da madrugada, olhando para o céu reconheci o bando que sobrevoava aquele pedaço? Eram irmãos e primos que, certamente, vinham à minha procura. Imediatamente, alcei voo e me juntei a eles. Ao verem-me aproximando, teve início a algazarra de pios e bater de asas que denunciava a felicidade que estavam sentindo ao me saberem vivo e bem disposto. Estávamos tão esfuziantes de alegria que só queríamos brincar nas alturas; durante horas desfilamos em voos harmoniosos, em diferentes formações, hora em fila dupla ou tripla, hora em linha reta, executando curvas no alto dos céus.
A sentir que a fome nos apertava, descemos incontinenti em busca de refeição. O primeiro grupo de árvores que avistamos seria o nosso banquete. Éramos dezoito no total e, todos, apanhados pelo aroma que nos recepcionou, descemos e mergulhamos em uma mangueira abarrotada dos frutos amarelinhos e convidativos, no auge da estação.
Inebriados com aquela dádiva prestada pela fiel natureza, nada mais nos importava além de saciar nossos estômagos vazios. Do nada, uma chuva em sentido inverso, ou seja, de baixo para cima, veio sobre mim e todos os meus parentes. Eram mamonas, dezenas delas. Não víamos de onde partiam. Apenas sentíamos a força com que eram arremessadas e o som oco que faziam ao se chocarem contra os galhos. Não havia outra saída a não ser levantarmos voo e partir logo se quiséssemos nos manter vivos. Não quero lembrar o momento em que vi dois dos meus irmãozinhos adorados sucumbirem ao impacto daquelas mamonas assassinas.
Já bem no alto, portanto livre do ataque horroroso que nunca mais consegui esquecer, qual não foi minha tristeza. Ao nos unirmos para a contagem do grupo era treze o total de nós. Mais um irmãozinho e dois primos haviam desaparecido. Certamente, se encontravam, agora, no chão de terra molhado, inertes e sem vida, resultado de um ato mesquinho e egoísta que, ao desvalorizar a vida e se alegrar com a morte, não prevê a consequência que isto traz para a própria humanidade: uma Terra sem cor e um céu citadino desprovido do que há de mais belo e deslumbrante que vem a ser o canto cativante de um pássaro a enfeitar as poucas árvores que ainda sobrevivem em nossas grandes cidades civilizadas.
Envolvidos pela dor e enojados com o comportamento humano em relação a nós, partimos para nunca mais deixar os campos que ainda restam para a sobrevivência de nossa espécie.