A TERRA DA MELECA
Clayton habitava a Terra da Meleca. A Terra da Meleca era engraçada. Tão engraçada quanto tentar responder quando se deve aplicar injeção em bunda de formiga? Quantas cataporas cabem no nariz? As pipocas da panela riem antes de explodir? Tão engraçada quanto dizer, “Tome vitaminas de sais minerais com B12!”.
A Terra da Meleca era isso: engraçada. A secreção nasal de Clayton raspava o ladrilho do banheiro. Clayton ria e fazia cocô. O cocô era hilariante e isso porque lembravam os ovos da geladeira.
Os ovos da geladeira gostavam de cair na risada. Risadas de pintinhos que escapavam das omeletes fritas pela mãe.
Clayton vivia a meleca e estava dentro dela quando vestiu a calça xadrez curta, com meias até o ovo do joelho. Somente com essa roupa se podia entrar na ninhada de meninos e meninas chamada escola.
A meleca também estudava na escola. Somente assim se justificava o grude dos chicletes nos tijolos, no carpete da diretoria, nas mesas coloridas da sala de aula, nas portas dos banheiros.
A meleca tornara a escola engraçada, principalmente na entrada, pois Clayton sentia-se melhor sentando na penúltima carteira da fileira do lado da parede do que na primeira carteira da fileira da janela, em frente à Dona Maria. Quem sentava ali era Regininha, que, muito falante, decerto não poderia viver na Terra da Meleca.
Às dez horas da manhã, soava a campainha do recreio. Depois, Clayton bebia a caneca de leite com chocolate. O leite da escola nunca se transformaria no refrigerante gaseificado das bolhas soltas em um copo, mas depois do primeiro gole, já se podia estalar a língua e rir do bigode espumoso das meninas.
E as canecas de ferro então, apareceram as brancas, as descoradas, as enferrujadas. Mais engraçadas as canecas sem alça que vinham quentes. A queimação espetava as mãos e as canecas caíam na risada. Os alunos as chutavam. Viravam canecas de futebol.
Clayton tomava o leite e se lembrava do gorila de suspensórios. O desenho do bicho foi a maior piada da tevê. Gorila barrigudo, boca de penico.
Após a merenda, o habitante da terra da meleca caminhava pelo terreno da escola, quando descobria objetos pré-históricos: palitos de sorvete chupados pelo vento, cabeças de “pregossauros”, cadarços absolutamente perdidos dos sapatos.
Ele sabia, coisas inteiras eram concentradas e o mundo não fazia diferença. Os pedaços das coisas, as cabeças de prego, ao contrário, pediam ajuda. Deviam ser recolhidos e conservados para crescer e assim faz a mãe canguru quando guarda os filhotes e cacarecos de mãe na bolsa da barriga.
No fim do recreio a Regininha não sabia que brincava no tanque de areia movediça.
Duas horas depois, Clayton voltava para casa. Um dia viu na tevê os astronautas do foguete Apollo 11 no meio do oceano sendo salvos por homens-rãs que pulavam na água. Não se via de onde... pulavam na água. Clayton se lembrou do que a professora dissera sobre o planeta Terra. Ele é redondo, igual a uma laranja. Então pensou, os caroços que a terra cospe, são os tais homens-rãs. Clayton pediu laranjas.
Certa tarde choveu e, após a chuva, uma taturana atravessou o quintal. No dia seguinte, outra chuva igual e, quando estiou, duas taturanas passearam pelo terreno. O menino supôs que melecas de muitas patas nascem depois de qualquer aguaceiro. Estranhamente chamavam as taturanas de “lagartas de fogo”. Melhor seriam “lagartas molhadas”.
Depois das lagartas, o fato mais meleca do mundo foi a história do soldado de madeira de barriga gorda, que era igual a um pino de boliche.
Clayton rememorou o jogo – aquele das bolas de ferro com três furos – e imaginou que dentro da cada oco de cada bola caberiam muitas outras, bolas de meleca puxadas do nariz.
O boneco do boliche era um soldado triste. Uma cabeça de madeira tão sem função no mundo que seria melhor abrir um buraco para guardá-lo dentro. Tapá-lo até ele sorrir e ficar feliz.
Clayton enterrou o boneco, socou a terra, esperou passar a noite e, no dia seguinte, ao desenterrá-lo, viu o pino ali, no mesmo posto do buraco. Agora finalmente satisfeito da vida, na posição de guerreiro da cratera.
Nada mais espantaria o soldado. Nem um batalhão de formigas.
A constância do amigo soltou em Clayton a mesma cara de alegria de quase todos os bonecos. E ele riu muito, e tanto, até saliva escorrer-lhe da boca.
Clayton descobrira a lealdade. Amigo espera amigo, e nem precisam de mapa. Nunca fugiriam das trincheiras. O boneco tornou-se o seu companheiro. O pino de boliche estourado.
Assim passavam os dias até aquele recreio, o da merenda dos ovos cozidos sem sal. Ovos cozidos são insuportáveis sem o grude do sal. Quem sabe por isso – pela falta da meleca – Clayton não retornou à sala de aula depois do intervalo. Escondeu-se no banheiro, julgando ter criado a grande arte da trapaça. Não estar onde devia estar e estar sobre a privada da segunda cabine.
Ele aguardou o rebuliço dos alunos diante da sua carteira vazia. A diretora cutucaria os buracos da escola. A professora explicaria o esconde-esconde para a mãe. Tantas desculpas encheriam a trincheira fedida do banheiro.
O soldado do reino da meleca esperou a bagunça. Nada aconteceu. Abriu a porta. Examinou o local, as torneiras, o mictório, os vitrôs emperrados. Nenhuma procura por ele, o camuflado. Voltou. Andou pelo local. Pisou na poça de urina da primeira cabine. “Droga!” Xixi fedia, e por isso mesmo deveriam cumprir a missão, buscar o último combatente da tropa. Ninguém gritava “Alô, câmbio! Alô, câmbio!”.
Clayton surpreendeu-se com a indiferença do primeiro ano C. Não a compreendeu. Como não observaram a falta da cabeça, na penúltima carteira da parede, perto da porta?
As aulas continuaram sem atropelos. Clayton saiu do banheiro, avistou o pátio deserto. Decepcionou-se. Algo saíra errado. Nem um espantalho em plantação de milho nem a ponta vermelha dos foguetes chamam mais a atenção do que sumiço de aluno. Voltou ao banheiro, esperou. Ele não estava nem quente, nem frio. Aguardou bestamente.
Pensou que deixaram de procurar porque o dia estava quente e amarelo. O dia era um tijolo. Pensou mais carregado, nem se os seus dedos fossem espremidos nos furos da maior bola de boliche do planeta, ninguém escutaria o grito de dor.
A imagem da bola de boliche surgia do desenho do gorila. O gorila tinha agora um rosto de gorila.
Muito tempo depois, Clayton se entregou à inspetora da escola. E a mulher, seguindo as obrigações do cargo, avisou:
– Olha, da próxima vez tu vai levar um psicotapa na cabeça!
A inspetora chamava tapas na nuca de psicotapas. Poderiam traumatizar a vítima para sempre. A mulher não era do tempo das “bolachas”.
O psicotapa pairava sobre as cabeças.
Voltou à sala quase na hora da saída. Os alunos riam. Ele riu também. Riu sem olhar para os narizes. Os narizes também riam na Terra da Meleca. Os narizes levantavam as cabeças. Ninguém reparava os rabiscos do chão.
Mas os alunos riam da criancice de Clayton e ele, que não se sentia uma criança, acreditou, naquele momento, que sempre fora o que não devia ser. E além disso, os dois dentes da frente amoleceram. Os dentes poderiam se perder e torna-lo um cabeça de prego. Ora, vejam vocês, um cabeça de prego!
Clayton não era mais tão inteiro como pensava e, por isso, apenas por isso, a Terra da Meleca acabou.
Do livro: "As crianças do general Médici"