O PRESENTE

As mães esperavam os filhos para abrir o seu presente do dias das mães. Elas não sabiam, mas receberiam um cartão. Elas abririam o mimo e contemplariam maravilhadas – na face interna da dobradura – o coração da criança contornado por um fio de lã vermelha e abaixo os dizeres:

São Paulo, 10 de maio de 1970. Parabéns pelo seu dia, mamãe!

Os alunos do primeiro ano A da Escola Peri e Ceci, porém, ainda finalizavam o “Cartão Especial do Dia das Mães”. Prontamente haviam recortado a cartolina branca, dobrado, costurado o coração e, agora, pintavam sobre a capa um jardim florido.

A professora mostrou na lousa que margaridas e rosas eram boas flores para serem plantadas no jardim do cartão. Margaridas são mais bonitas.

– Orquídeas são feias. Não gosto de flor de boca aberta - disse a professora.

A classe escolheu margaridas para o jardim. Margaridas por causa das pétalas.

Eduardo concordou e desenhou muitas margaridas. Caprichou. Cada pétala de uma cor. Aproveitou e também soltou borboletas coloridas. Aqui e ali no céu branco do cartão.

As borboletas desenhadas eram quase idênticas à mariposa que ele capturara naquela mesma semana. Eduardo viu a mariposa e julgou ter descoberto uma espécie rara de lepidóptero e isso pela cor opaca, os pelos, o corpo grosso e abrupto como um charuto voador.

A borboleta surgira atrás da cortina da sala. Ele se aproximou, fechou a voadora dentro de um copo para asfixiá-la. Esperou e o inseto nem ligou. Então optou pelo esmagamento. Usou o caderno. A opção foi acachapante. O charuto saiu pelo rabo da mariposa.

O menino sentiu pena, mas colou a “amiga”, com as asas abertas, em uma folha grande de caderno. Pendurou a espécie na parede e começou e terminou ali a “Grande Coleção de Borboletas do Brasil”.

E foi naquela hora que Eduardo ouviu a avó gritar:

– Matar mariposa faz mal, meu filho. Mariposas são bruxas... saem disfarçadas para enganar a gente. Querem chegar nas clareiras do mato e cozinhar bruxarias.

O menino tanto se impressionou com a história que despejou a “coleção de mariposas” no fundo da lixeira. Depois, comprimiu o corpo enfeitiçado com bastante lixo. Mesmo se a malvada quisesse, não levantaria.

O colecionador retornou ao seu “Cartão Especial do Dia das Mães”. Contou cinco borboletas e parou. Inventou um quadro de margaridas pregado no jardim das margaridas. A mãe adoraria.

Examinou o presente. Pensou em esverdear o vento. E quando o vento pintou o cartão; quatro meninas da sua turma sobrevoaram o desenho.

– Que nojento!

– Não se pinta margarida assim! Está tudo errado!

– Margarida amarela tem que ser amarela. Se você quiser margarida vermelha, tem que pintar vermelho.

–Mesmo se for margarida azul, as pétalas... são azuis. Olha o que você fez...

Eduardo não ligou para a bronca. Continuou.

– Não se pinta flor desse modo! Você é estúpido!

–Nós vamos chamar a Dona Vera!

- Dona Vera, olha as margaridas do cartão do Eduardo! Pintou tudo diferente.

A professora chegou, mirou o desenho e aprovou o protesto das alunas:

– Está errado... Ficou feio... o colorido... você nem respeitou o circulo. Tem que pintar dentro da pétala... Olha o jardim das colegas!

Eduardo abriu os cartões bonitos. Depois examinou a própria obra... De fato, ela perturbava. As cores boiavam sobre a cartolina como legumes em uma sopa.

O seu cartão estava horroroso.

- Apaga tudo que ainda dá tempo – disse a professora.

Eduardo se martirizou por não entender o acabamento máximo das coisas. Aquela margarida do seu desenho... a maior... com pétala roxa, outra verde, duas vermelhas, uma azul. O centro da margarida! Marrom! Não tinha sentido o marrom.

As cores não combinavam. O roxo deve ser roxo para sempre e completamente, principalmente, roxo.

Examinou novamente o que produzira. Margarida não é farol de trânsito, mas porque não pode ter muitas pétalas e muitas cores?

– O cartão dele vai estragar o presente de todo mundo.

Eduardo não entendia. Quis puxar uma tromba azul de elefante. Quis lembrar de qualquer bicho imaginário. Buscou apoio na professora. Virou-se. A professora atendia outro aluno. Ela piscava os olhos. A mestra usava enormes cílios postiços. O menino confundiu-se.

– Vai que está quase na hora.

Eduardo engoliu a ordem. Pintar novamente? Era muito tarde para redesenhar o presente, replantar o jardim. A mãe esperava no portão. Baixou a cabeça. Voltou à carteira. Pegou a borracha, riscou o cartão, engoliu o choro, guardou os lápis. Depois mordeu a mão direita, retirou novamente os lápis do estojo. A mãe merecia o trabalho escolar. Voltou a desenhar.

Qual o problema de pétalas coloridas? Cores não são inimigas de margaridas.

Eduardo quis se livrar do problema. Rascunhou mariposas em uma clareira do cartão. Pensou em criaturas escuras, meio aves, meio insetos, totalmente bruxas eram a professora e as quatro alunas esvoaçantes.

Decidiu não entregar o cartão à mãe. Não aquele cartão, o das mariposas. Elas iriam para a lixeira da escola. A lixeira imunda do fundo da escola, sempre cheia de cascas de bananas, cascas de ovo, pão, folha de caderno....

Eduardo jogou e ficou olhando. Ainda não estava bom. Ele deveria fazer como a mariposa da coleção. Jogar lixo sobre a bruxaria. Esmagar as alunas e a professora de cílios estranhos. Revirou a sujeira. Amassou bem. Não estragaria o presente de ninguém, mas elas estariam debaixo dos ovos.

O menino percebeu que também achatara o coração de lã vermelha. Pensou. Porque não usaram lã amarela? Ninguém sabe a cor do coração. Ninguém sabe a forma. No próximo Dia das Mães, desenharia um caule embaixo de um coração verde-abacate. Talvez embaixo do coração-abacate.

Saiu da escola. A mãe esperava no portão com cara de mãe. Ele precisava de uma justificativa para a ausência do presente. Qual a desculpa? Olhou para a mãe e saiu:

- Mamãe, eu odeio matemática.

Do livro:"As crianças do general Médici"

E-mail do autor: phcfontenelle@gmail.com