O SEGREDO DO GUARANÁ

O telefone tocava sem parar. Minha cabeça estava estourando por motivos justos: havia saído por volta das quatro da manhã de mais uma festa de rodeio. Eu não havia “festado” propriamente. Era mais um evento que havia coordenado. Estava, portanto, exausta de tanto que tinha trabalhado. Exausta e feliz. Organizar eventos era minha paixão. Só existia algo que poderia me perturbar depois de uma noite de sucesso como aquela: o toque insistente do telefone.

Corri abraçada no lençol, quase embolando meus pés nas pontas e, finalmente, calei o inconveniente toque. Pronto, o fio estava arrancado e nenhum mortal poderia mais perturbar o descanso da justiceira.

Joguei-me entre os travesseiros e naveguei pelas terras de Hypnos. Embalada pelo perfume das cobertas, jurei estar sonhando que um ser, de outra galáxia, batia na porta de casa e acionava uma música onde o cantor não cantava: ele gritava um cântico guerreiro, tão guerreiro quanto meu semblante ao escancarar a porta do jeitinho que estava (de pijama de bolinhas coloridas e cabelo sem definição): era meu Padrinho Estêvão!

Tio Estêvão é o padrinho que toda pessoa pode e deve pedir para Deus: bondoso, amigão de todos, quase dois metros de altura e, há muito tempo, passado dos cem quilos. Quando acha graça em alguma coisa, sabe o que faz: coloca as mãos na barriga e se sacode todo, soltando logo uma gargalhada que alegra a multidão. Pele branca no estilo polaco, bigode bem aparado, pouco cabelo e muita simpatia. Quando abre os braços, parece que vai abraçar o mundo.

Meu tio – e também padrinho de batismo- havia vendido sua fazenda no interior de São Paulo e investido em terras no norte do País, dizendo-se um “guardador das riquezas da Floresta”. Fez isso bem no ano de minha formatura e sentia-se em débito comigo por não ter acompanhado as festanças. Pois bem, ele resolveu se redimir justamente naquele dia, de surpresa, como sempre gostou de fazer: na porta de casa, carrão com som ligado, sorriu e me abraçou com ternura, em um “você está ótima” que só ele sabe falar.

Acordada “na marra”, porém feliz com a presença dele, fiz logo um café bem forte para nós dois e começamos a colocar o assunto em dia.

Após meia hora de conversa fiada, recebi um convite totalmente inesperado: o jatinho dele sairia naquela tarde e ele queria me dar um presente: havia uma oportunidade de trabalho lá no Amazonas. Eu o ouvia com atenção, mal acreditando no presente que ele estava para me proporcionar. Era uma chance de brilhar os olhos de qualquer recém-formada: auxiliar na organização do famoso Festival de Parintins!

Não pude pensar duas vezes. Corri para arrumar as malas e deixei para almoçar no aeroporto. Às quinze horas, eu me encontrava nas alturas literalmente, repleta de pastas e projetos. Pelo notebook, iniciei minhas pesquisas sobre o evento amazônico, deslumbrando-me entre a cor azul e a vermelha das torcidas respectivas do Boi Caprichoso e do Boi Garantido.

Sobrevoar o Rio Amazonas foi um espetáculo à parte: as curvas aquáticas me fizeram desejar ter uma prancha motorizada para percorrer cada metro de beleza e aventura.

Chegamos com o pôr–do-sol entre as montanhas da Ilha de Tupinambara. Eu me sentia dentro de um episódio de uma série antiga de TV que meus pais amavam denominada a Ilha da Fantasia. Meu padrinho me olhava orgulhoso e cumprimentava sorridente várias pessoas que víamos pelo caminho.

Tio Estêvão tinha uma pousada na beira do rio, onde o cenário mais parecia uma casa em frente ao mar. Meu quarto era enorme e foi onde me esmerei em organizar sistematicamente todos os sapatos de salto, vestidos, acessórios, perfumes, livros de etiqueta, apostilas de “Organize seu Evento e seja o Sucesso” e, claro, muitos hidratantes. O secador de cabelos e a chapinha tiveram lugar especial.

A noite era quente e regada de ritmos que eu já estava curiosa para conhecer. O cansaço fez com que eu dispensasse o jantar e, com janelas abertas, dormi sob as bênçãos de uma lua que só Parintins poderia me proporcionar.

“Cordões de borboletas

Tingindo o céu da mata

Colorindo a cortina

Verde-viva da floresta”

(Tempo de Borboletas – Ronaldo Barbosa- Toadas 2009- Boi Caprichoso)

Acordei num só sobressalto, sob o som de uma toada forte, bem em frente à minha janela. O sol estava resplandecente e eu não sabia se fechava os olhos ou se corria para ver o tornado acústico que soava pela ilha.

Tio Estêvão abriu a porta, acompanhado de Dona Carolina, uma cozinheira que prometia me impedir de caber em minhas roupas em apenas uma semana de quitutes e iguarias de Sumá, a deusa indígena da agricultura.

Eles me trouxeram uma bandeja de café matinal regado a açaí e me explicaram: era a música de um dos grandes grupos folclóricos da ilha e que anunciava o início dos ensaios para o Festival.

Corri para a janela e, assistindo àquela comitiva vestida de azul, comecei a planejar minha participação, apresentando mil idéias para o Espetáculo.

Meu tio ficou me aguardando na sala, pronto para me levar até a prefeitura da cidade e me integrar à equipe de trabalho para os preparativos do local da festa.

A Prefeitura de Parintins é uma construção enorme, de cor rosa - salmão por fora e por dentro. No interior das salas, além de um ar-condicionado ligado ao máximo, vemos quadros com desenhos de várias tribos indígenas formados por cores vibrantes, abrangendo o vermelho, o azul, um verde bem forte, além da predominância do laranja e do amarelo. Vasos imensos feitos de cerâmica marajoara adornam com sabedoria dos séculos todos os ambientes. O rol de entrada estende para o visitante um tapete colorido imenso, feito de fibra natural, que, por si só, já é um cartão de boas-vindas para os novatos iguais a mim.

Tio Estêvão passava de porta em porta cumprimentando a todos. Ele conhecia as pessoas e as olhava como se as tivesse visto nascer. No final do corredor, havia uma porta que se abria ao meio, com duas maçanetas douradas e foi por essa passagem que cheguei até a equipe com a qual eu iria trabalhar.

Após as apresentações, assentei ao lado de um senhor de evidente descendência indígena: sua pele reluzia o dourado do sol; suas poucas rugas denunciavam que ele devia ter muito mais idade do que parecia; sua seriedade retratava a concentração típica de um pajé. Cheirava a ervas medicinais e ostentava o imponente nome de Guaraci.

Do outro lado da mesa, estava Cândida, a coordenadora de todo o Evento. Cândida era alta, estilo alemão, com cabelos brancos e fartos presos cuidadosamente num penteado impecável. Era conhecedora de cada detalhe da Festa, desde quando as comemorações ocorriam na quadra da Catedral Nossa Senhora do Carmo.

No pedaço esquerdo da mesa oval estava Iramaia. Ela apresentava uma idade perto dos quarenta anos e uma alegria de vinte. Bem-humorada, conseguia digitar a Ata da Reunião com a velocidade dos pássaros.

No lado direito, tínhamos o Pedro, um cineasta e fotógrafo que havia mandado para os ares o trabalho noturno e sem hora que fazia em uma revista no Rio de Janeiro e se instalou no Estado do Amazonas em caráter irrevogável.

Durante toda a manhã, aprendi sobre os brincantes – integrantes dos grupos folclóricos-, as toadas – trilhas sonoras de cada grupo -, os Quartéis Generais – locais onde são confeccionadas as roupas e as alegorias - e, principalmente, sobre o Bumbódromo - arena com arquibancada construída especialmente para o Festival Folclórico de Parintins. Fora da época de festas, o local abriga uma escola municipal com 18 salas de aula!

Nas badaladas do meio-dia, fomos a um restaurante instalado em um grande salão, em formato retangular. Quando se entra, a primeira imagem é a de estar em uma tenda das mil e uma noites. As mesas quadradas com lugares para quatro cadeiras, todas trabalhadas com fibras de mogno. Do lado esquerdo, vários tecidos floridos, com fundo vermelho, pendurados no teto e formando cortinas nas janelas. Do lado direito, a mesma decoração, porém, com fundo azul. Eram as cores dos Grupos Folclóricos, ou, como dizem na Região, as cores dos Bois: Garantido e Caprichoso, respectivamente. Pisávamos, portanto, em território neutro, onde ambas as torcidas conviviam dentro da harmonia típica da natureza.

Eu derretia de tanto calor. À bordo de um taier de cor gelo – que era o mais leve possível – e calçada com um scarpan de mesma cor, porém acrescido de detalhes dourados, sentia vontade de mergulhar no rio de ponta à cabeça, vestida mesmo como estava. Seria um adeus às luzes no cabelo que havia feito recentemente. Não teria importância, se possível fosse.

Observando melhor meus novos colegas, atentei-me que estava completamente destoante dos demais mortais. Dona Cândida e Iramaia usavam vestidos de alças e sandálias do tipo rasteirinha. Senhor Guaraci e Pedro vestiam camisas de manga curta e calças feitas de algodão orgânico naturalmente colorido. Calçavam sandálias de couro.

Pedro reuniu duas mesas – uma de cada Boi – e apressou-se nos pedidos de sucos e água. O almoço foi regado a toadas, caldeirada de tucunaré com pirão e inimagináveis bolinhos de piracuí.

Tio Estêvão chegou cercado de amigos vestidos de branco e adornados de colares multicores: segundo Senhor Guaraci, era uma equipe médica recém-chegada que, com certeza, se hospedaria na Pousada também. Pela primeira vez, senti meu tio muito preocupado. Ele simplesmente acenou para nossa mesa com as mãos sem esboçar qualquer sorriso e foi assentar com aquele grupo do outro lado do restaurante. Parecia que não queria que ouvíssemos o assunto que falavam quase em um cochicho.

Após nos deliciarmos com sorvetes de cupuaçu e açaí, despedimos dos amigos de roupas alvas e de meu tio preocupado e voltamos para nossos planejamentos. Tinha que ser um sucesso, principalmente para mim, que faria qualquer coisa para poder estrelar em um evento de repercussão internacional.

“Na cadência da toada

No toque da Batucada

Delira galera encarnada

Faz feliz o coração”

(O segredo da paixão- Enéas Dias/ Moisés Colares / Marcos Lima- Boi Garantido)

Meu coração batia no ritmo do bumbo: estávamos em um “QG”. Nunca havia imaginado que, em plena noite do mês de abril, Parintins recebesse tantos turistas. Poucos eram brasileiros. A maioria era composta por europeus. Eles chegaram com a noite, vindos de asa dura –avião – e também de bubuia – barco-. Os ensaios para a Festa que aconteceria no final de junho já estavam a todo vapor.

Iramaia havia me presenteado com um vestido banco, bem comprido e todo trabalhado em renda.Apesar do trabalho duro que haveria nos dias seguintes, eu conseguia me sentir livre e fazia questão de dançar girando, fazendo a barra da roupa voar na cadência da toada.

Passeamos pela Quadra e observamos a disposição dos participantes, estudando as melhores imagens que Pedro poderia gravar para um comercial sobre a Festa.

Eu sentia muita sede e, então, disparei a tomar água, água de coco, refrigerante, suco, cerveja e cuba libre. Consegui controlar a sede. Bebi demais.

Voltamos de madrugada para a pousada. Iramaia me entregou para Dona Carolina que, entre gargalhadas, fazia sinal para mim de mantermos silêncio até conseguirmos finalizar a subida da escada para meu quarto. Quase completando o feito, houve um estouro que apagou todas as luzes ao mesmo tempo. O gerador ou algo parecido havia queimado e ficamos na escuridão total.

Minha cabeça doía. Alguns hóspedes saíram de seus aposentos pronunciando dialetos difíceis de traduzir. Tio Estêvão apareceu com uma lanterna e foi acendendo castiçais estrategicamente espalhados pelo corredor. Quando ele nos viu paradas na escada, simplesmente pediu que ficássemos quietas e desceu a escada apressado,iluminando o salão lá em baixo.

Dona Carolina apoderou-se de uma vela acesa e ajudou-me a chegar até meu quarto, dizendo que a maré parecia estar conduzida por Anhangá. Entendi o recado e caí na cama a exemplo da deusa Yara diante do rio. Sonhei que estava no meio de um rio, um rio escuro e de ondas muito altas e fortes. Eu estava em um barco pequeno que foi arremessado até uma pedras e tudo havia ficado escuro. As águas em Parintins iriam mudar de cor...

O dia amanheceu cinzento, parecendo estar com raiva de minha inocente bebedeira. Olhei com dificuldade lá para fora e observei que a pousada estava rodeada por carros de diversos tipos. Lá no rio, embarcações de médio porte, de cores branca e amarela exibiam a bandeira nacional. Muita gente vestida de branco lembrava um terreiro de candomblé. Apressei-me em me arrumar e desci para o café, já que até Dona Carolina deveria estar enfezada comigo, porque não havia aparecido com a bandeja matinal que eu tanto desejava.

De cima da escada, ouvi muita conversa e vi gente tomando açaí de maneira ágil. Tio Estêvão andava de uma mesa para outra, como um verdadeiro maitre, demonstrando que o bom-humor havia voltado. Dona Carolina explicava receitas culinárias para duas jovens atentas.

Assim que meu tio me avistou, deu-me um bom dia da altura dele e conduziu-me para uma mesa redonda, no canto da sala de refeições, onde já se encontravam Dona Cândida, Pedro e Sr. Guaraci. Iramaia ainda não havia chegado, provavelmente estava com a cabeça do tamanho da minha.

Dona Carolina me deu um beijo no rosto e nos serviu café com leite quente, pão francês com tucumã e queijo qualho, além de açaí na tigela e suco de cupuaçu.

Estranhei a reunião logo cedo e perguntei sobre o motivo daquela movimentação na pousada. Principalmente no grupo de branco.

Estávamos entre médicos e enfermeiros de distritos sanitários indígenas que vieram integrar uma equipe de profissionais da saúde vinda lá de São Paulo. Eram aqueles doutores indicados por Senhor Guaraci que almoçaram no restaurante no dia anterior.

Tínhamos, no entanto, um problema: a falta de energia em toda a ilha ocorrida na madrugada e a pouca reserva que havia nos geradores comprometiam a conservação de centenas de medicamentos e vacinas. Esse problema de energia vinha preocupando os moradores há vários dias e, agora, a mobilização era para salvar todo o arsenal médico conseguido de doações de todo o Mundo. Tínhamos uma única opção: era preciso antecipar a expedição até à Comunidade de São Pedro do Andirá, onde estaria sendo construído um centro cirúrgico para atendimento aos índios descobridores do guaraná: os sateré- mawé.

Entrei em pânico.Eu não era médica. Não sabia falar sateré. Confesso, odiava mato. Uma coisa era organizar um festival internacional; outra coisa era ver todos os planejamentos paralisados e participar de uma equipe de logística apoiando expedição rio abaixo. Expedição rio abaixo e dentro de uma balsa. Era sair da civilização, do chuveiro quente, do lençol perfumado de natureza e sentir o cheiro forte da própria natureza. Não mesmo.

Apesar do ar condicionado, Tio Estêvão suava em bicas.Tudo precisava ser rápido e ele havia resolvido encabeçar a comitiva. Eu comecei a suar com ele, porque todos na mesa se alimentavam e conversavam comigo já tratando sobre os isopores que teríamos que carregar. Pelo celular, Dona Cândida passava ordens para um grupo de apoio lá na prefeitura informando a suspensão dos preparativos da festa “até segunda ordem” e intimava a presença de todos lá na porta da pousada em trinta minutos. Lembráva-os sobre água mineral e colchonetes.

Naquele instante, percebi que a comunidade estava unida em uma única missão logística: levar o material médico para a comunidade indígena. Inexistiam exceções. Não conseguia comer. Havia ficado sem apetite. Percebendo meu semblante perdido, Dona Carolina largou o que estava fazendo e, abaixando perto de meu ouvido, sussurrou: é bom você se alimentar porque a viagem será longa...

Eram nove horas da manhã e eu me encontrava no meio de caixas, pacotes, colchões, toneladas de equipamentos hospitalares e galões de água mineral. Providenciei uma mochila com tudo que foi possível colocar em vinte minutos.

Estávamos na linha do Equador. A luz do sol por lá é de uma intensidade invasora de quaisquer óculos ou bloqueadores. Ouvi gritos: era Iramaia acenando para mim, tirando fotos com celular e segurando dois chapéus de cor azul, um para mim e outro para ela. Iramaia parecia se divertir tanto com minha indignação que só isso já lhe garantia que a viagem valeria a pena.

Nossa balsa era de porte mediano, com relativo conforto. Lá dentro, tínhamos pequenos bancos com algumas almofadas de algodão. Não existiam comissários de bordo. Dona Carolina havia organizado uma cesta com frutas em cima de um balcão. No canto direito, havia água mineral e copos descartáveis. O banheiro ficava logo depois. Era um só.

Descemos o Rio Amazonas. Quando vi Parintins desaparecendo lentamente, ainda consegui enxergar os braços de Dona Carolina despedindo-se de nós. Lá em baixo, como sempre, Tio Estêvão dava as ordens e organizava o trabalho braçal. Eu e Iramaia estávamos debruçadas em uma espécie de varanda. Olhávamos o rio, os pássaros, o entusiasmo da turma de branco e a contagem das horas para conseguirmos chegar a tempo de salvar toda a medicação que levávamos.

Eu não tinha a mínima idéia de como faríamos isso. Aliás, até então, eu não tinha nem a noção do que eu estava fazendo ali. Seria inútil minha presença e a única pessoa que parecia enxergar isso era Senhor Guaraci que nada dizia, mas não tirava o olho de mim. Parecia me observar e me reprovar o tempo todo. Aquela, realmente, seria uma longa viagem.

O percurso fluvial, apesar das condições simplórias, foi regado por música de todos os gêneros - de boleros a toadas -, peixe assado, frutas e paisagem de cartão postal. Até eu consegui me distrair e fiquei imaginando um retorno, quem sabe de jatinho, cheio de imagens em foto e vídeo para enfeitar a organização de nosso Festival. Talvez nossa volta seria mais rápida do que eu poderia imaginar. Era entregar os medicamentos e as vacinas, desejar boa sorte para todos e voltar. Não seria tão ruim.

Eram quase nove da noite, quando atingimos a boca do Rio Andirá – o Rio dos morcegos de asas pretas e cabeças brancas. As águas pareciam ter vida própria e ficaram de um verde escuro como se questionassem irritadas nossa presença.

A balsa começou a ser jogada de um lado para o outro do rio. Os marinheiros gritavam em experiente festa: é o banzeiro!

Eu me agarrei em um balcão que estava perto, enquanto todos corriam para segurar na primeira estaca que encontrassem. Não parecia que estávamos dentro de um rio. Parecia um mar bravio. Olhávamos de um lado para outro e não víamos margens. Estávamos no meio de um mundo verde de águas intolerantes à presença humana.

Ficamos por duas horas nesse maremoto, até que o luar nos mostrou imensos troncos retorcidos à nossa frente. Tio Estêvão abriu os braços em contentamento e proclamou: chegamos!

Fomos recebidos por representantes indígenas que se vestiam de forma completamente diferente do que eu poderia imaginar: usavam roupas como nós. Imensas tochas iluminaram nosso caminho até uma escola indígena. O nome era Escola Indígena São Pedro. Havia um gerador que se encarregava da energia local.

Tomamos uma sopa de mandioca maravilhosa e dormimos em colchonetes cercados por uma folhagem de aroma delicioso: estávamos protegidos pelas folhas do Buriti. A lua encontrou os janelões abertos e nos fez companhia.

Em uma varanda, haviam vasos enfeitados por frutinhos vermelhos que pareciam feitos um a um, artesanalmente. Levantei-me movida pela curiosidade e me aproximei daquela tentação ao paladar. Senhor Guaraci apareceu do meio do terreiro e, antes que eu pudesse assustar, pela primeira vez ele esboçou um sorriso, girou os braços e disse: seja bem-vinda à terra do guaraná.

Acordamos sob o sol equatorial. Dona Cândida e Tio Estêvão nos diviram em grupos de trabalho: equipe para descarregar a balsa, equipe da cozinha, equipe da limpeza, equipe da tenda.

Escolhi a equipe da tenda, acreditando que a organização seria meu maior forte. Ocorre que havíamos chegado antes do previsto e os índios ainda socavam a terra para que fosse feita a instalação da tenda que se constituiria no Centro Cirúrgico. O jeito foi aprender a juntar terra, erguer alguns tapumes e esticar as lonas, enquanto técnicos instalavam geradores e aparelhos de ar condicionado. Por sorte, éramos muitos e, à tarde, os aparelhos estavam completamente ligados. Entramos na grande tenda para os ajustes necessários e sentimos mais calor que os quarenta e tantos graus que faziam do lado de fora. Dona Cândida apressou-se em conferir cada ar condicionado. Estavam no máximo, não havia mais como aumentar a potência. Ficamos desolados. O que mais poderíamos fazer?

Potyrõ! Senhor Guaraci e Pedro correram para o centro da comunidade e começaram a gritar Potyrõ! Potyrõ!

Em minutos apareceram dezenas de indígenas, todos com as mãos repletas de folhas imensas de Buriti. Até as crianças ajudaram, trazendo em seus bracinhos as folhinhas que aguentavam carregar. Eles haviam guardado todas aquelas ramagens durante meses, porque sabiam que poderiam socorrer alguém ou a si próprios com aqueles tesouros. Foi o que fizeram.

Os índios subiram agilmente pela tenda e a cercaram do teto até às laterais com Buriti. A refrigeração foi total. A capacidade de isolamento término foi assustadora, tivemos até que diminuir o ar condicionado de tão frio que havia ficado o Centro Cirúrgico.

Ainda desconhecendo a tradução, batizamos a tenda de Centro Cirúrgico Potyrõ. O nome ficou ainda mais apropriado quando Senhor Guaraci nos explicou o significado: era um clamor da língua tupi que significava todas as mãos juntas. Nenhum livro acadêmico havia me ensinado essa parte. A organização daquele Trabalho estava apenas começando...

As cirurgias foram iniciadas na manhã seguinte. Chegaram muitas pessoas, todas da etnia dos reveladores do guaraná. Os sateré-mawé eram sorridentes, amáveis, sem medo. Estavam confiantes em nós. Diante daquela cena, tornou-se impossível pensar em voltar, apesar da logística principal estar montada. Iramaia e eu ficamos então encarregadas da reposição de medicamentos. Pedro ficou responsável pelas fotos e filmagens. Senhor Guaraci era o intérprete e relações públicas. Dona Cândida e Tio Estêvão eram os coordenadores de apoio e ajudavam os médicos nas entrevistas de algumas emissoras de televisão e rádios que iam em busca de reportagens para o restante do Planeta.

Os trabalhos romperam a noite. Nós nos revezávamos juntamente com os enfermeiros. Senhoras da tribo cuidavam de nossa alimentação como se fossem nossas mães. As crianças nos traziam frutinhas vermelhas para brincarmos com elas e não sentiam sono no meio de toda aquela movimentação.

Em um de meus pequenos intervalos na madrugada, resolvi organizar algumas caixas vazias que estavam na entrada da balsa, não percebendo os pedacinhos de madeira que se encontravam soltos na lateral. Senti uma dor forte no braço esquerdo. O machucado foi feio.

Uma menina de seus nove para dez anos de idade pegou em minha mão e eu obedeci. Ela me conduziu até uma jovem mãe que cozinhava em um caldeirão de cheiro apetitoso. Meu ferimento foi tratado com um óleo bem frio que estancou o sangramento e aliviou as dores de imediato. Corri para o Centro Potyrõ e exibi o milagre para a comitiva. Os médicos pediram que chamassem a curandeira, uma vez que, na cidade, aqueles ferimentos só poderiam ser estancados com pontos cirúrgicos, o que não foi necessário. Aguardamos ansiosos pela revelação do segredo. O que poderia ser aquilo?

Pela manhã os novos olhos dos sateré-mawé operados para a retirada da catarata se abriram. A cada remoção de curativo, entoávamos palmas e emoções. As cirurgias dos Expedicionários foram bem-sucedidas. A toada da saúde estava no ar.

Ao longe, rodeando a ponteira da balsa, vimos um grupo de mulheres carregando potes de cerâmica bem decorados, nas cores vermelha e marrom. Elas se aproximaram quase em um ritual e nos ofereceram o presente. Senhor Guaraci traduziu: elas não estavam apenas nos dando os vasos; dentro deles, havia grande quantidade do óleo milagroso. Era o óleo do Buriti.

Pedro e um comunicador de uma rádio local, com a interpretação de Senhor Guaraci, embrenharam-se em uma reportagem especial sobre os poderes milenares armazenados naquele pedaço de mundo. Eu não havia sido convidada para o feito.

Com alguns curativos no braço, tive que ficar afastada da reposição de estoques dos remédios. Em relativo repouso, juntei-me aos pequeninos e fomos brincar de pular ondas na beira do Andirá.

Depois disso, acompanhei as mulheres na lavagem de roupa e observei como era limpo o pequeno lago atrás das casas onde elas organizavam a lavanderia. Olhando para cima, pelo lado direito, vi um casebre repleto, por dentro e por fora, de folhas de Buriti. Elas entenderam minha curiosidade e me levaram até lá. Apontaram os imensos vasos repletos de óleos, as folhas finas que usavam na confecção de tapetes e muitos, muitos frutos que eram utilizados na cidade em sorvetes, cremes e todas as iguarias que adoramos saborear. Elas tinham todos aqueles produtos do Buriti aos montes, tudo bem estocado e guardado com um isolamento término perfeito. Era um ensinamento passado de uma geração para outra que assegurava a manutenção da comunidade local e vizinhas.

Voltei para o Centro Cirúrgico e procurei por Dona Cândida. Assim que a localizei, pedi para ela autorização para, assim que voltássemos, organizar os camarotes da Festa de Parintins com folhas de Buriti, adornadas com o fruto vermelho do Guaraná. Ela sorriu em aprovação.Nesse momento, chegou na porta um senhor com mais de cem anos, recém-operado e, ainda com os olhinhos espremidos, falou em claro português: nós estaremos lá também. Contem com nosso povo, assim como contamos com vocês.

“Rema caboclo romeiro de São Pedro

Que o céu avermelha em aconchego

Mergulha nas águas do rio-mar(...)”

(Romaria nas Águas – Boi Garantido – Composição: Cyro Cabral)

Nossa despedida foi enfeitada de abraços, bênçãos e muitos registros fotográficos do Pedro. Tio Estêvão dava as últimas orientações para um grupo que ficou para desmontar o Centro Cirúgico, agora, Centro Cirúrgico Potyrõ. Ele seria novamente erguido dentro de alguns meses, em algum outro ponto fluvial.

Recebemos um carregamento farto de folhas, frutos e óleo curativo, quantidade suficiente para nossa próxima empreitada, agora festiva, para a qual a presença de alguns representantes sateré-mawé estava confirmada. Tio Estêvão, em pessoa, iria buscá-los.

Eu ganhei dos pequeninos curumins um pote de óleo do tamanho de minhas mãos, para carregá-lo comigo para aonde eu fosse. Cumpro até hoje o prometido, esteja usando bolsa de fibra ou laminada.

Enfrentamos novamente o banzeiro, só que durante a luz do dia. Iramaia e eu fomos para a frente da balsa. Lembrei-me de minha chegada, da primeira visão que havia tido do rio e do quanto havia desejado surfar em uma prancha motorizada pelas curvas aquáticas. Assim estávamos nós e eu sem medo algum, com a mesma coragem agora do povo sateré.

Desembarcamos em Parintins com a noite regada por uma chuva intensa. Mesmo assim, fazia calor. Pela primeira vez, não me preocupei em me proteger e andei sem pressa na direção da pousada. Cheguei feliz e encharcada. Muito feliz.

As luzes estavam acesas e Dona Carolina apareceu abrindo as portas verdes imensas da entrada principal e os braços em nossa direção. Senti-me de volta para casa, como se sempre tivesse morado ali.

Subi para meu quarto e fiquei admirando os livros sobre etiqueta, organização de eventos, mídia e tive uma imensa vontade de incluir uma edição sobre o trabalho que havia acabado de participar. Poupar recursos e, com eles, avançar em novos projetos coletivos: essa era a principal lição despertada pelos costumes do povo sateré. Uma sabedoria milenar, cultivada a partir dos Buritis rodeados pelos arbustos de Guaraná.

Abri o notebook e não quis perder nem um minuto: digitei este registro, encantada sobre a forma como uma comunidade indígena pode nos ensinar a investir no futuro, a partir de simples e rotineiras atitudes no presente, seja armazenando folhas e frutos, seja revelando a experiência de práticas de gerações sobre sustento, proteção e cura. Quando terminei este material, a chuva havia passado e as araras anunciaram a chegada dos primeiros raios de sol.

As ondas do Amazonas aceleraram os meses na Ilha. Hoje, é a abertura do esperado Festival. Parintins está cercada por asas duras e bubuias de todas as nacionalidades. As ruas estreitas e simetricamente retas estão estreladas de furgões de emissoras de rádio e televisão. Os pássaros brincam de esconder entre o vermelho e o azul da decoração da cidade. A Festa é de uma energia contagiante.

Conseguimos montar dezenas de camarotes revestidos de folhas perfumadas e frutos vermelhos deliciosos. Ainda sobrou material para a decoração da entrada e também da arena de apresentação.

No final da tarde, nos reunimos nos bastidores atrás do palco para um brinde regado a suco de Buriti e de Guaraná – a cuba libre foi retirada -.

Pedro dançava com a câmera ligada. Tio Estêvão e Dona Cândida ensaiavam passos de Amo do Boi e Sinhazinha da Fazenda. Senhor Guaraci era o Pajé em pessoa.Iramaia, Dona Carolina e eu ganhamos um instrumento rítmico chamado repique e fomos autorizadas a integrar a marujada – grupo de percussionistas que sai atrás da figura do Boi.

A alegria se completou quando recebemos nossos amigos de pele dourada. É possível enxergar nos olhos deles a visão clara que possuem ao olhar para o caminho das águas e enviar por elas ensinamentos que passam de uma geração a outra, de uma comunidade para outra, principalmente quando se trata da guarda de recursos e mantimentos para o futuro.

Nem todos os meses são fartos e seguros. É por esse motivo que os sateré-mawé ensinam a estocar todas as riquezas do Buriti e do Guaraná e disseminam essa cultura para peles douradas ou não, porque sabem o tanto que precisamos avançar na preservação da vida e, principalmente, erguer muitas e fortes tendas Potyrõ.

A próxima expedição da saúde e uma nova festa acontecerão sob as luzes do Natal e eu estarei aqui, aguardando por você, nobre leitor. Siga a coordenada a Oeste de Greenwich, com regulagem de cinquenta metros acima do nível do mar ou simplesmente pouse no Aeroporto Júlio Belém. Pode confiar:você também desejará conquistar e compartilhar o segredo para garantia do futuro guardado pela magia vermelha do guaraná.

“Guardiães dos Segredos

Que revelam os sinais

Que passarão aos filhos

E aos filhos

De seus filhos

Além”

(Toada Nominação. Boi Caprichoso. Compositores: Andréa Pontes, Bené Siqueira e Simião Assayag)