O Galo José
O galo é uma ave que nem deveria ter esse nome. Porque, quando se fala em ave, o que nos vem à mente é um animal com asas e asas foram feitas para fazer voar. E o galo não consegue executar esse ato tão comum a sua espécie. Quando uma águia, decolando do alto da pedra, desce embicando porque viu aqui em baixo a presa para o seu almoço e atravessa elegantemente os domínios da fazenda. Ou quando o bando de abutres, que há pouco rastreava o céu se reúne ao redor do fausto banquete. Isto mata de inveja a pobre ave que, quando muito, alcança a cerca e ali se prostra sem coragem de ir mais longe. Então, ele retrocede e retorna às suas galinhas.
Na fazenda não existe qualquer outro tipo de ave além do galo José. E suas galinhas, é claro. O patrão não as quer. Desde que José entrou ali conquistou o território. Não por seu belo canto ou sua crista avermelhada e insinuante, mas por sua rebeldia. Não seria difícil possuir, a fazenda, diversos tipos de aves. Isto porque sua localização é privilegiada; fica ao final de uma área florestal bastante peculiar. Daqui, olhando para o alto vê-se a mata. Desce pela encosta do morro, coberta de árvores compridas, mas que não dão essa impressão por causa do plano inclinado. Todo tipo de aves passeia ali por cima; parece que surgem do nada. Por trás é o horizonte. Por vezes a claridade do sol impede o olhar de ir mais longe. Surgem, como pontos verdes, carreiras ordenadas de pássaros cruzando o céu para, mais embaixo, ganharem as árvores; só então deixam-se distinguir. Outrossim, descem, feito asas deltas; planam, soltando, no caso dos papagaios, gritos altíssimos que reverberam por toda a mata. Os viveiros de mestre Jerônimo já estão há meses desativados. Ainda aqui estão, por vários pontos dessa propriedade, essas armações de madeira, com suas telas enferrujadas, rodeadas de mato e água da chuva acumulando-se nas cuias e entre os desvãos de terras.
Por muito tempo predominaram os galinheiros. Cansado da terra e da agricultura, mestre Jerônimo voltou-se para os frangos e para os ovos. Transformou toda uma área de batata e de feijão num galpão para a sua criação. A produtividade crescia e ele tomou gosto pelo negócio.
Ampliou. Caminhões carregados saíam dali para abastecerem o mercado. Os anos foram passando; a vida estabilizou-se; chegou o tempo da aposentadoria. Como não tinha filhos queria descansar com a mulher. Diminui seu ritmo, programando-se para parar em breve. O galpão continua; é um depósito de tudo e de nada ao mesmo tempo. O que não tem função ou serventia é para lá que vai; há anos vem sendo assim. Quanto à produção, deixou-se um cantinho para consumo próprio. As galinhas entram e saem. Vez ou outra uma vai para a mesa do casal quando há visita. Eles não fazem questão; preferem as vagens e os legumes que ainda dão por ali.
No meio de uma confusão de tralhas, eletrodomésticos abandonados; portas e janelas; chapas retorcidas; mesas de ferro; cadeiras de palha e de balanço; vasos de planta e outras quinquilharias saltava e corria o galo José. Tudo passara por ele: a prosperidade da fazenda; a construção do galpão e o esfolamento das que lhe foram companheiras de ração e de poleiro. E via-se ele agora velho e abandonado. No tempo das vacas gordas era o mais cortejado; tinha todos os privilégios. A condição de galo já lhe dava vantagem. Ser então o favorito punha-o na frente de todos. Era o mais belo e o mais inteligente; o mais ágil e o mais fértil. Mestre Jerônimo deixava-o à vontade. Como a criação era tradicional, não se utilizava estufa nem luz elétrica. E muito menos, hormônios. Os ovos eram galados. As galinhas iam e vinham dentro dos galinheiros, circulavam pelo terreno do galpão, nutrindo-se, correndo com suas ninhadas ou pondo naturalmente. Galo José era o rei daquele universo de vida saudável. Poucos galos lhe resistiram a sua superioridade.
Hoje, porém, a vida é outra. Ele já não vê com tanto entusiasmo as companheiras. O canto continua belo, mas muito menos frequente. Quando as mãos ávidas de uma captura vasculham o seu reduto, roubando-lhe uma franga prestes a virar almoço ele já não tem a reação de antes. Não mais persegue o carrasco; não bate as asas freneticamente, alçando um voo para cima da geladeira velha, tampouco sai debicando o que vê pela frente. O que mais importa a galo José é mudar de vida. Entende a morte; viu-a de perto inúmeras vezes, enganando as raposas, protegendo-se de suas investidas noturnas. Hoje tem espaço de sobra. Tem, lá atrás, o que restou de um galinheiro, com as poucas companheiras que lhe restaram, num canto escuro e úmido, mas que já não despertam nenhum interesse. Tem a área enorme da fazenda; os lagos dos patos - vazios e abandonados - que por causa dele, dali se foram também.
Naquela manhã de inverno, fria e silenciosa, galo José não cantou como de costume. Não deixou no ar o repentino bater de asas, seguido de um potente e belo estrugido capaz de retumbar na distante montanha. Lançou, sim, por entre as árvores do coqueiral, gemidos intermitentes de um pesar inexplicável. Cada esforço jogava-o para frente com o bater de asas. Depois, silenciava, como se o torpor lhe transmitisse uma nova carga de coragem e energia. Daí, novo canto gemido e novo impulso para frente com o bater de asas. Ultrapassou assim o coqueiral, indo para o lado da cerca. Agora sim, o canto forte e imponente, com um eriçar de crista anunciador dos primeiros raios de luz solar ainda tímidos no horizonte da floresta. Isto feito, um, desta vez forte, bater de asas impulsionou-o para cima da cerca. Só que não levou junto a sua indecisão nem o seu medo. “Não importa a consequência. A liberdade me espera” era a mensagem que emitia. Dali para a árvore do caminho seria um novo salto, um pouco mais alto, porém. Alçou mira, bateu asas e saltou. Só que saltou junto com ele a raposa para abocanhar; ali desde horas à espera da decisão corajosa daquele projeto de ave.
Bem, não era esse o destino que ele queria. Mas conseguiu sair da fazenda.