O beliscão de dona Lia
O crepúsculo era breve. Mas apressava tudo, antes que a noite se adensasse. Era gente correndo pro trabalho, outros saindo enquanto se mobilizavam velhos e crianças para a oração vespertina.
A luz mortiça do salão - que andava substituindo a igrejinha agora em reforma - tornava-se avivada pelas velas, essas sim, que se iam acendendo para a prece. Era uma campanha do terço que se fazia e, naquela imponência de mãe de seminarista - e de madre superiora - Dona Lia Fidélis capitaneava as ações.
Nem sempre pia, pois na ojeriza da recalcitrância da criançada, imprecações e beliscões distribuía, impaciente, semper fidelis, Dona Lia.
O salão tinha esse nome por um certo exagero, mais que esmero. Mais em relação aos demais prédios do povoado, remoto, antigo, São Gonçalo do Brumado.
Toda aquela santaria da igreja para lá fora levada, daí aquela atmosfera meio sagrada. E além dos quadros das estações da via-sacra, agora ornavam as paredes alguns cartazes que almas piedosas haviam feito para adornar a circunstância daquela
campanha do terço.
Papai mesmo fizera um, num papelão de cartolina, de fundo branco, com duas mãos, uma dando, outra recebendo entre os dizeres: Quem dá aos pobres empresta a Deus. No giz azul, que era a cor do céu. E a disponível, para a marcação dos panos na fábrica de tecidos. A outra cor disponível era a vermelha, até mais saliente, mas não condizente com as coisas divinas.
E coube a papai, apenas saído de seu turno na fábrica, puxar o terço naquela noitinha, já escurinha e friinha. A cada Padre Nosso ou Ave Maria que ele rezava, em voz firme, vinha imediato o coro de vozes das mulheres, caudaloso e rumoroso, além de fervoroso, a encher o salão.
Sentado numa cantoneira, num cantinho lá atrás eu já quase nada via, e tudo ouvia. Aquele vozerio, das pias mulheres abafava a voz de papai. A divagar, comecei a sentir crescer aquela ameaça e passei a querer que aquilo acabasse logo, senão elas acabavam com ele.
E já não sei se chorei antes ou após o pio beliscão de Dona Lia.