Leite dos anjos
Na Velha Serrana, menos ateniense que espartana, a gurizada mais abastada achava vaga e aconchego nas classes anexas ao Ginásio. Mas os grupos escolares José Valadares e Francisca Botelho abrigavam também a quota de meninos e meninas que podiam portar seus uniformes, seus calçados e até, em alguns casos, ostentar suas lancheirinhas.
E a eles se misturava a meninada de família mais desbastada: pés no chão, não raro, capanga de pano ao invés de pastas de couro, e acesso à merenda reservada "aos meninos da Caixa". Correspondiam a mais ou menos um terço ou um quarto de cada turma e mesmo que gostassem daquela sopa rala de macarrão, ou duma canequinha de leite quente açucarado, que lhes eram servidos logo no início do recreio, conquanto não achassem graça naquela rotulação. Que em geral, margem dava à gozação. Se o mundo lhes fazia justiça, a crueldade não era postiça.
Embora com trabalho fixo, garantido pela estabilidade dos mais de dez anos de Companhia, meus pais, tendo que priorizar o investimento de emergência feito na aquisição da casa própria, cortavam um dobrado pra alimentar uma prole que crescia e consumia. E de C pra D deslizando-se ia.
Vi-me, assim, descalço por uns bons meses, até que sapatos usados redentores, doados pelo primo Zenrique, me recompuseram a dignidade do pisar. E embora me desqualificassem para o status de menino da Caixa, não me tiraram aquela vontade de compensar a falta da lancheira-companheira.
Um belo dia, e foi ensolarado ao que estou lembrado, com um Tamandaré à mão, notinha azulzinha de um cruzeiro então, comprei minha canequinha de leite. Dona Mansinha, servente afrocondescendente, serviu-me o leite naquela única conchada e deu valor e rumo à notinha adorada.
Curiosidade de um dia sanada.