664-A VAQUINHA DE LUDOVICO-Histórias de Vovó Bia-6

O pequeno caminhão de Ludovico Levantava poeira na estrada. Ia carregado, mas mesmo assim, ia depressa. Era um Chevrolet “Tigre” ano 1939, bem cuidado pelo proprietário, que o exibia sempre que podia aos amigos e vizinhos.

Ao passar pela Fazenda Palmeiral, parou perto da porteira e desligou o motor. Desceu do veículo, passou pela porteira e com passos decididos, em estilo militar, fazendo barulho com as botas bem engraxadas, se dirigiu à casa sede.

Vovó Bia, sempre agarrada no seu crochê, viu o vizinho se aproximando e levantou-se para recebê-lo.

— Bom dia, dona Beatriz! — gritou o chegante, tirando o chape de abas largas e exibindo um sorriso rasgado na face queimada de sol.

— Bom dia, seu Ludovico. Vamos chegando.

Ele sobe as escadas com agilidade, dois degraus de cada vez.

Apertam-se as mãos.

— Então, está indo para a cidade?

— É, estou levando uma carga de feijão e dois porcos, vendidos pro seu Totó Miranda. Passei aqui pra saber se a senhora quer alguma encomenda.

Vovó Bia olha para Ludovico. Quem te viu e quem te vê... — pensa.

Os netos se aproximam e cumprimentam Ludovico, que responde sempre com sorrisos.

— Bons dias, crianças. Então, não vão a escola hoje?

— Hoje é feriado escolar. — Responde Dorinha.

— É, a gente não tem aula hoje. Estamos de folga. — acrescenta Carlinhos.

Vovó Bia responde a oferta de Ludovico:

— Quero sim, que me traga uma encomenda. Por favor, passe na livraria do Astolfo e veja se já chegou o livro que lhe encomendei há três semanas. Chama-se “Os Doze Trabalhos de Hércules” do Sr. Monteiro Lobato.

Mexendo na cestinha de linhas e agulhas de tricô, tira duas notas e entrega ao Ludovido:

— Aquí está o dinheiro. Se o livro já chegou, o senhor pega e paga. Por favor.

— Não é favor nenhum, não senhora. Faço isto com muita satisfação.

Ele despede-se e numa cadencia militar, se dirige ao caminhão. Ao sair, buzina e acena para Vovó Bia e os três netos.

Ela senta-se e pega de novo na agulha e na linha para prosseguir o crochê. Ela, como se estivesse conversando consigo mesmo:

— Esse seu Ludovico! Foi preciso perder tudo para arribar na vida.

Tavinho, que ainda rondava por ali, ouve o monólogo e indaga:

— Uai, vovô, por que a senhora está dizendo isto? Ele é um fazendeiro rico, tem até caminhão para levar as coisas para vender na cidade.

Vovó Bia seu deu conta de que fora ouvida, e tenta despistar.

— Ora, é uma história muito antiga. Falei só por falar.

História? História antiga? As palavras bateram nos ouvidos do garoto, cujos olhos brilharam.

— Então conta a história do seu Ludovico, conta.

E antes que a avó concordasse ou não, gritou para os irmãos, que estavam ao pé da escada:

— Dorinha! Carlinhos. Sobe pra cá. A vovó vai contar uma história. A história do seu Ludovico.

Sem ter como recusar, e já sentido o prazer de contar uma história aos netos, Vovó Bia começou:

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Seu Ludovico já morava nos sítio ao lado, quando Tito, seu avô, comprou esta fazenda. A primeira vez que nós o visitamos, fiquei com pena do homem. Numa casinha muito mal cuidada, praticamente uma tapera, ele e sua mulher moravam com os três filhos. Todos estavam muito mal vestidos, sujos, descalços. Magros, acho que nem comiam direito. Tito perguntou ao seu Ludovico:

— Como é que vocês vivem? Não estou vendo plantação, nem uma horta por perto.Não vejo nenhum animal.

Seu Ludovico respondeu:

— Tenho uma vaquinha de dá uns litros de leite todo dia. Nois usa uma parte do leite, a mulher faz mingau, nois tomamos. O que sobra eu levo prá cidade, vendo, é uns quatro ou cinco litro, e dá pra gente comprar uns mantimentos e de vez em quando, umas roupinhas pras crianças. Assim, a gente vai levando a vida.

Ele então mostrou a vaca. Pastava num pedaço de chão coberto por capim misturado touceiras de alecrim e outras plantas no meio das quais a vaca tentava encontrar uns brotos para seu sustento.

— Levando a vida... – meu marido falou. — Isso não é vida, seu Ludovico. É preciso criar coragem, roçar este pasto, plantar alguma coisa.

— Uai, seu Tito, num carece não. O que a vaquinha dá já é bastante pro nosso sustento, uai.

Um dia, uns poucos meses depois, aparece o Ludovico aqui na fazenda Palmeiral, com a cara mais triste do mundo. Vinha falar da desgraça que abatera na sua vida:

— A vaquinha morreu!

— E agora, como é que o senhor vai cuidar da vida, da família, do senhor mesmo? — Perguntou meu marido.

— Uai, seu Tito, se o sinhor me arranjasse um serviço...

O fazendeiro, que já sabia da índole do vizinho, respondeu:

— Vou lhe arranjar um serviço só por uns três meses. É o tempo suficiente pro senhor plantar alguma coisa nas suas terra e colher e conseguir se virar.

— Mais prantá o quê, seu Tito. Num posso nem compra as semente.

— Eu lhe empresto a semente. O que o senhor quiser: arroz, milho, feião. O senhor planta e maga na colheita.

E assim foi feito o trato. Seu Ludovico trabalhava aqui na fazenda e ainda tinha de arranjar um tempo para fazer o plantio e cuidar da sua pequena lavoura. Começou plantando meio saco de milho, O tempo ajudou, e as espigas estavam já granadas quando ele foi à cidade e combinou de vender o milho verde para um fabricante de pamonhas. Com isso, viu a cor do dinheiro e ficou entusiasmado. Reservou na roça de milho um canto para o milho secar e pagar a meia saca de semente emprestada.

Aquela mudança de vida foi boa para seu Ludovico e também para a mulher, e por conseqüência, para os filhos. Então, era tempo de plantar o feijão “da seca”. Ele comprou uma saca de semente e plantou tudo. A mulher ajudou no plantio, nas capinas e na colheita. O tempo continuou ajudando os plantadores da região e a colheita de feijão rendeu “cem por um”, como se diz. E de novo Ludovico viu em suas mãos um dinheiro que ele nunca imaginara ter.

Ludovico, a partir de então, não parou nunca de plantar e colher. Nas entressafras do milho, arroz e feijão, plantava melancia abóboras, quiabo, jiló, que vendia na cidade.

Não se passaram nem cinco anos e o sítio do vizinho mudou completamente. A tapera em que morava foi substituída por uma casa construída de tijolos, grande, com quartos para os meninos. Ao redor da casa, um pomar de mais de cem espécies de frutas diversas. No fundo da propriedade, onde passava um córrego, plantou uma horta, para venda da produção.

As criações engordavam. Tinha vinte cabeças de gado no pasto, duas dúzias de porcos no chiqueiro, e a galinhada no grande cercado. No ano seguinte, comprou o caminhão que vocês viram passar aqui, hoje de manhã.

E não ficou só nos plantios e nas criações. As crianças cresceram e quando foram para a escola, Ludovico também deu vontade de aprender a ler. A mulher, Jovita, também quis. E lá iam os dois, no caminhão, todas as noites, para a escola noturna da cidade.

No que aprendeu a ler e a escrever, Ludovico foi ficando cada vez mais confiante, desenvolto. Ficou alegre, bem humorado.

— Por isso é que eu falei que foi preciso ele perder tudo o que tinha, a vaquinha que dava uns minguados quatro ou cinco litros de leite, para ele sair daquela miséria. Hoje é o Senhor Ludovico Viana.

Os três escutavam com atenção. Quando a avó terminou, Dorinha, mais velha e que já lia muito e gostava de frases de efeito, disse:

— É, vovó, Deus escreve certo por linhas tortas.

— É mesmo, vovó disse. Deus manda, de vez em quando, algumas coisas superiores às nossas forças, a fim de que aprendamos a lidar com as dificuldades e sair delas cada vez mais fortes.

Emerenciana, a cozinheira, chegou à porta da sala que dava para varanda, com o anúncio que agradou a todos e que fez os netos entrarem correndo:

— O almoço ta na mesa!

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 18 de junho de 2011-04-18

Conto # 664 da SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/02/2015
Reeditado em 24/02/2015
Código do texto: T5148630
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