647-A MULHER DE DEUS- Histórias da Vovó Bia-2o.

A MULHER DE DEUS

Noite de inverno. Nem mesmo as janelas fechadas conseguiam impedir o frio ou o barulho do vento agitando as árvores ao redor da grande casa da Fazenda Palmeiral. Na sala maior, que todos chamam de sala de jantar, Vovô Aníbal e seu filho Alpineu. conversam sobre a seca e o gado emagrecendo, e o racionamento de sal, devido à guerra Elvira, mão de Dorinha, Tavinho e Carlinhos está preparando as camas para as crianças. Estende cobertas e mais cobertas para protegê-las do frio.

Na sala de visitas Vovó Bia acomoda-se na poltrona, cercando-se de almofadas, o xale enrolado no pescoço e a longa saia que vai até os pés, calçados com chinelas fechadas e acolchoadas. Os netos sentam-se nas outras poltronas e no largo sofá.

Havia todo um ritual antes de Vovó Bia dar início ao entretenimento dos netos: eles tinham de estar bem acomodados, quietos, e pedir num coro desafinado:

— Conta uma história, Vó Bia!

A simpática velhinha então contava mais uma história, começando em tom de voz baixo, que ia crescendo assim que a empolgação aumentava, como uma artista de teatro.

— Hoje estou me lembrando de uma história de um menino, numa noite muito fria, em Roma. Era uma tarde de inverno. No final de dezembro, quase Natal, a neve estava caindo, e um garoto de uns dez anos, descalço e tremendo de frio, estava parado em frente a uma vitrine. Era uma loja de sapatos e o garoto pensava em como seria bom se ele tivesse pelo menos uma botina daquelas mais baratas, para calçar.

Levou um pequeno susto quando uma senhora, que havia chegado perto dele sem que ele percebesse, lhe perguntou:

— Você está tão tristinho, olhando esta vitrine. Que é que você estava pensando?

O garoto respondeu, meio sem jeito:

— Eu estava pensando como seria bom ter um par de botinas. Pedi a Deus para me dar umas botininhas, nem que fosse daquelas mais baratas, ali no canto da vitrina, a senhora está vendo?

A mulher sentiu uma grande pena do garotinho. Oferecendo-lhe a mão, disse:

— Venha comigo.

Entrou na loja com o garoto. Foi logo atendida pelo balconista, ao qual pediu:

— Me traga alguns pares de meia que sirvam para este garoto... Como é mesmo seu nome?

— Giovanni, o garoto respondeu.

— Sim, três pares de meia para Giovanni, a mulher confirmou o pedido.

E então perguntou ao balconista:

— Seria possível o senhor me trazer uma bacia com água quente e uma toalha?

— Imediatamente, senhora. — O balconista respondeu. — Venha para o fundo da loja que providenciou o pedido da mulher.

Então, ela tirou as luvas, se ajoelhou e lavou os pés do garoto, secando-os em seguida com a toalha.

O empregado trouxe então as meias, que a mulher calçou nos pés do garoto.

Voltaram para a frente da loja, e a mulher fez com que Giovanni experimentasse algumas botinas, não das baratinhas, mas das mais confortáveis. Escolhida a botina, a mulher pagou toda a compra. Os outros pares de meia foram embrulhados e ela entregou a Giovanni, dizendo:

— Pronto! Você pediu a Deus, agora recebeu o que desejava. — Fazendo um pequeno afago no rosto do garoto e beijando sua face, disse:

— Agora está bem confortável, não é mesmo?

Ela se virou para sair, mas o garoto a segurou pela mão.

— Posso abraçá-la? — perguntou o garoto.

Ela se abaixou para receber o abraço. O garoto estava com lágrimas nos olhos quando perguntou:

— A senhora é a mulher de Deus?

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Vovó Bia também se emocionava com as histórias que contava aos netos. Enxugou uma lágrima furtiva com a ponta do chalé. Olhou para os netos e viu nos olhares de todos os três, lágrimas se formarem, prestes a rolarem sobre as faces coradas.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 10 de janeiro de 2011.

Conto # 647 da SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS

2º. De “Histórias da Vovó Bia”.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/02/2015
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