Pés paternais
A vida era boa demais. Brincadeiras, logo ali na porta da rua, no aconchego do quintal, com passagens pela casa quase que só pra breiá o vermeião da copa, e pra incidental refeição, e agora vinha papai com mais uma novidade, todo refesteloso.
A novidade anterior era o relógio de pulso, marca Creatior, com 3 ponteirinhos, inclusive o dos segundinhos, metálico, em corpo e pulseira, um primor. Ia até para o trabalho, com aquela preciosidade ostentada no pulso esquerdo, e nos dava o gostinho de dar corda, cada um à sua vez.
Não era razão pra metidez?
Já a novidade do presente, essa também bolia com a gente: o par de Vulcabrás, amarronzado, de que papai se tornou fã declarado. E declamado, tecendo loas, das boas, àquela maravilha dos tempos modernos.
O solado, dizia ele deslumbrado, era coisa pra durar dez anos, diferente
desses nossos sapatos comuns que logo precisam dum novo salto, duma meia-sola, e ainda perdem a forma - coisa com que a gente não mais se conforma.
Cheguei a cogitar de inquirir a papai se havia o Vulcabrás infantil, mas estou que não cheguei a abrir o bico, pois logo ele emendava, enquanto em elogios se prodigalizava, que era uma pena pé de criança mudar tão rápido de tamanho, porque senão, calcaria toda a família com aquele prodígio, que por certo nunca calçou São Remígio.
E de lambuja, para compor aquele quadro de puro deleite, papai ainda apresentava o par de meias de náilon, igualmente marrons - e o Roberto Carlos não iria mesmo nos visitar naquele ermo - que só esperavam a vez de serem inauguradas na missa do domingo seguinte.
Tivemos visitas, intencionais ou só devocionais, que vieram espiar a maravilha do Vulcabrás. Bem que papai podia ser viajante vendedor
daquele produto que tão bem anunciava. Só que a fábrica, impenitente, renitente, não deixava. Mas, de vingança, o Vulcabrás lá não pisava!