O Carrilhão

Ele sempre me chamou atenção pela sua presença imponente, pelo seu porte elegante, pela sua imagem intocável, pelo seu pêndulo eminente com aquela bola dourada que ia e vinha numas batidas cadenciadas...

E eu ficava inerte e encantada com tudo aquilo que via, olhava toda a beleza e com franqueza por dentro eu dizia: Galileo Galilei, tu és o meu rei! Onde foste buscar tamanha beleza? Com certeza já previas a minha idolatria. Pois bem, agora contarei com mais detalhes sobre esse ilustre que sempre me fascinou, e num alumbramento maior ele me tocou:

Na hora do Angelus, na sacra hora, onde Gabriel anunciou a santa Maria, - Eis a serva do Senhor! E eu ali olhando aquela imagem que mexia com o meu coração, que me inundava a alma tamanha emoção, o carrilhão e a santa Maria:

"Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Iesus.

Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostræ. Amen".

Ela, sempre linda com o seu manto azul como se o céu rasgasse no espaçar das nuvens encarneiradas toda a lã daqueles bichinhos engraçadinhos que não deixavam de ser coisa do Senhor. O anil tão varonil me deixava a mil. E naquele quadro pintado se via o reflexo do caríssimo carrilhão. As batidas soavam nobre, os meus ouvidos se deleitavam e as mãos postas de dona Ester, a rainha Ester conforme a bíblia, com o seu terço, entoando a reza tão conhecida e agradável a esta menina.

- Vamos, filha - dizia ela contrita. Reze com a mãezinha do céu. E eu rezava na voz de menina aquela oração tão linda, mas não tirava os olhos dele, o distinto carrilhão, que agora, com o passar das batidas repousava apenas no barulhinho oco do pêndulo incansável e... talvez feliz... não sei. Feliz, sim! Quem não queria ser o deleite de apreciadora menininha, tão novinha e cheirando a leite, mas que já sabia onde encontrar a beleza das coisas, na natureza, nos carrilhões da vida e na santa Maria, mãe de Nosso senhor.

Após a oratória, dona Ester, cuidadosa como quê, me oferecia a água benta que vinha lá da Paróquia do Padre Gerard. E eu tomava aquela delícia mirando sem nenhuma discrição aquele lorde carrilhão. E dona Ester incomodada indagava: - Filha, o que você vê nesse relógio tão antigo? Foi do tempo do ronca! E eu dizia na esperteza e na proeza das minhas oito primaveras, tão meiguinha eu era. - Dona Ester, ele é tão lindo, tão elegante, tão, tão, tão... como vou explicar para a senhora... tão digno de sua casa, que mais parece um palacete, mas aposto com todas as letras, que na minha casinha iria fazer sucesso pra cacete!

Dona Ester, comovida com a minha admiração, comunicou a minha mãe, que logo, loguinho e sem mais delonga, nada de embromação, senão, ou qualquer coisa terminada em "ão"iria aparecer em sua porta uma geringonça bem velha e muito mais antiga que ela mesma, (rs). Iria despachar na minha porta aquela beleza. E eu na certeza iria lustrá-lo como se estivesse abrilhantando aquele rei n'alguma festança. Talvez eu tivesse o espírito de algum índio velho, que na pajelança mostrava-me todos os mistérios dos meus anseios.

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 24/11/2014
Reeditado em 25/11/2014
Código do texto: T5046629
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