Arapuca

Me dava gosto espiar papai fazendo a limpeza do quintal. Desbastado o cipoal à foice, a hora era da enxada capinar e revirar a terra que libertava aquele cheirinho inebriante de mato e umidade na humildade escondida, que, liberta, ganhava sob as narinas, nova vida.

Mas quando ele investiu de facão naquele arbusto de assa-peixe - sapêche, a gente dizia - eu não imaginava o que viria. Dos galhinhos taludos, verdes e roliços, papai resolveu fazer uma arapuca, coisa que eu ouvira, mas só na cuca.

E na destreza com o cordão, ou cipó imbira mesmo que unira os dois pauzinhos da base piramidal, foi subindo, subindo, sempre alternando os lados com gravetos mais finos até chegar ao topo. E ficou tesa, uma beleza, feito uma casinha. Armou-a, mostrando-me a complexidade daquele artefato e algum grão há de ter espalhado ali, antes que o cair da noitnha nos fizesse retornar pra casa.

Sei que dormi mal na noite que sobreveio. A ansiedade em saber que ía ter um pássaro na mão é que esvoaçava o tempo todo na minha cachola. Seria um sanhaço, um sabiá, um fogo-apagou, um anu, ou um beija-flor? E se fosse um tiziu, um tesoureiro? Ou um canário, cantador e palreiro?

Mas não deu pra voltar lá no fundo do quintal sozinho no dia seguinte. Nem nos imediatos. Algo me imobilizava. Até que achei um dia, vai ver que na companhia do mano Beu, criei a necessária coragem. E eis que reencontro arapuca - desarmada, mas toda afrouxada! Só que dentro dela, nada! Papai filosofou: a madeira verde, ao secar, se afrouxou, e o passarinho que aí entrou, bateu asas e voou.

Sem passarinho na mão, ficou o consolo de que pras arapucas da vida, com paciência, há saída. Ainda que doída.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 16/11/2014
Reeditado em 28/04/2016
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