O valor de uma amizade
Tudo o que ele mais ambicionava era ter o dorso livre. Sonhava todas as noites com um verde prado onde corresse, pelos ao vento. E toda manhã, ao vestirem sua incômoda armadura, lá ia ele para a sua batalha cotidiana.
Às vezes, uma lágrima silenciosa marejava os seus grandes olhos cansados, quando da lembrança de sua infância feliz, do leite quente da mãe, dos exercícios diários, da musculatura se desenvolvendo depressa, e depois a adolescência arrojada, onde se esmerava em ser o melhor, o mais rápido, o mais forte. Quem sabe quem seria se não tivesse se esmerado tanto? – Hoje, talvez mais feliz – pensava . A vida cobra caro de quem se propõe a tanto e falha em tudo...
Uma chicotada o arrancava sempre desses torpores temporários. Apressava o passo, esticando as pernas que já bambeavam. O calor escaldante e a carga pesada deveriam lhe doer, mas já não doíam. Quase nem sentia mais o próprio corpo. Nem sabia dizer se vivia a realidade ou algum dos frequentes pesadelos. Comia quando lhe deixavam e bebia de águas quentes e sujas, mas nem isso lhe importava. Via, quase indiferente, os músculos cada dia mais flácidos, a pelagem rareando, feridas abertas pelas picadas de insetos. A velhice não o amedrontava, o fracasso sim. O medo de morrer sem sentir a plenitude de ser, ao menos por um dia, livre. Trabalhara tanto na vida e nunca o fizera para si mesmo, nunca por prazer. Quando jovem fora muito requisitado, pela sua força e agilidade, a executar tarefas que agora lhe pareciam todas despropositadas.
- Se eu pudesse recomeçar o faria mais docilmente – ponderava, nas poucas horas de descanso que lhe permitiam. – Quanto mais dócil o escravo, mais discreta e consequentemente mais leve é a sua escravidão, porque não se exige muito de quem nada ambiciona. Os seres como eu, rebeldes, intempestivos, indomáveis, são os mais exigidos, mais testados nos seus limites.
Lembrava-se de quantas vezes ouvira gritarem, das arquibancadas: - Campeão! Campeão! - E era bom, mas efêmero o prazer, porque sabia que depois das corridas viriam treinamentos mais e mais pesados. Um campeão deve estar sempre preparado para batalhas maiores e ele sempre estava. Até o fatídico dia em que se rebelou, e derrubou de cima de si, quem lhe fincava sem dó as esporas. Ele não conseguia entender porque lhe machucavam para que corresse mais, se ele sempre soubera executar muito bem o seu ofício. – Tão desnecessárias certas demonstrações de poder que os humanos têm – ressentia-se.
Depois do primeiro vieram outros e ninguém mais conseguia permanecer nas suas costas. Apanhara muito dos que pensavam que desta forma o domariam, mas quanto mais apanhava, mais certeza tinha de não mais permitir que humanos o cavalgassem. Enfim, desistiram dele e o venderam a um humano que decidira usar contra ele mesmo a sua própria rebeldia. Passou a integrar um estranho grupo de escravos supostamente indomáveis, que se sujeitavam a simular grandes espetáculos de derrubadas de humanos. A admiração pela valentia dos colegas, no primeiro dia de casa nova, caíra por terra ao perceber o artifício usado pelos humanos, para despertar nos pobres aquela reação. Não era valentia, era dor. É certo que passou a se alimentar melhor, sem aquelas dietas sofridas, pois se no passado se fazia necessária uma silhueta delgada, nesta nova, a aparência deveria ser a de robustez. Porém, só ele e os colegas sabiam o quanto lhes custava cada refeição e cada pinote.
Quando já estava muito famoso em seu novo ofício de derrubar humanos, acontecera um triste fato que, de um lado o libertaria daquela prisão mas, por outro o jogaria definitivamente na roda dos excluídos: um humano, mais atroz que os costumeiros, fincara tão fortemente as esporas em seu baixo ventre, que o tiraria para sempre daqueles humanos espetáculos de horror. Nunca mais o campeão das corridas! Nunca mais o invencível dos rodeios! E pior, nunca mais o precioso reprodutor que se orgulhava de ser. Agora tornara-se um qualquer, abandonado às mais terríveis provações.
Passara a puxar carroças e, em cima delas, os humanos, juntamente com as mais variadas e pesadas tralhas . Não havia mais como espernear, não adiantava mais empinar o dorso, nenhuma manobra o livrava dos seus grilhões. Daquela valentia toda só lhe restara o cansaço. Pouco a pouco fora perdendo todos os seus desejos, sobrando-lhe apenas dois: o de ainda poder correr livre, nem que fosse no seu último dia de vida, e o de conseguir vingar-se de um só humano que fosse.
Como tantas coisas inexplicáveis, com ele acontecia sempre que as guinadas de sua vida fossem à custa de intenso sofrimento físico. Desta vez não fora diferente: o seu atual humano sentira-se mal durante uma das descargas e fora socorrido por uma multidão, assustando-o tanto que ele saíra em disparada pelas ruas, carregando consigo a carroça vazia. De repente, o silêncio e a escuridão. Soubera depois que um caminhão o atropelara, atingindo fortemente as suas patas traseiras e destruindo completamente a carroça. Depois o arrastaram para a calçada e o jogaram numa caçamba. As patas doíam muito, mas a sensação de liberdade lhe enchia de louca euforia. Tanta, que a sua vontade era a de sair correndo naquele mesmo instante. Não pôde. Adiaria ainda um pouco mais, até que estivesse em condições de andar.
- Acho que teremos de sacrificá-lo – disse o veterinário à jovem que o assistia no engessamento. – Muito dificilmente ele voltará a andar. Uma fratura como esta pode impossibilitá-lo para sempre de trabalhar.
- E porque ele deveria ainda trabalhar? – respondeu a jovem. Não vê que ele já está velhinho e o seu dono já está morto? Ele não tem mais ninguém no mundo. Vamos fazer o que for possível por ele e deixar que a natureza decida o seu momento de partir.
Ah! Sensações desencontradas passavam pela sua cabeça agora! Tudo o que ele queria era fugir e nunca mais ouvir a voz humana e, no entanto, era uma humana quem decidia se ele viveria ou não! – O que ela faria com ele, depois que sarasse? De que maneira ela o machucaria ainda? Sim, estava claro para ele que ela estava lhe dando uma chance de viver para, evidentemente, tornar-se a sua dona, e machucá-lo de alguma maneira. Mas, se houvesse uma só chance dele ser curado, então ele faria qualquer coisa para cooperar e, no momento, permanecer imóvel era a atitude mais sensata. Depois pensaria num modo de fugir dela. Ou de derrubá-la na primeira oportunidade.
Os meses seguintes se arrastaram, penosamente. A jovem humana conseguira que ele fosse levado para um haras abandonado e o visitava, todas as manhãs. Colocava-lhe uma coleira, não muito apertada, e o obrigava a fazer curtas caminhadas, depois o deixava pastar tranquilamente, enquanto ambos tomavam sol.
– O sol é bom para fortalecer os ossos – dizia-lhe, com voz suave.
– Sim, eu sei – ele pensava, nunca desgrudando os olhos da baia, onde permanecia preso o restante do dia. – Eu sei pra que serve o sol e sei pra que serve um haras. Mas, ela está muito enganada se pensa que eu ainda trabalharei para ela de alguma forma. Nem posso mais e nem quero. Antes, eu a matarei. – E olhava nos olhos dela, como a implorar que o deixasse viver em paz os seus últimos anos de vida. Ele não era um assassino. Não queria ser!
Um belo dia (sim, aquele dia estava muito belo) ele, já completamente curado, a esperava em pé e disposto, na porta da sua baia, quando ela chegou. Aquele seria o seu último dia ali, estava decidido. Iria embora, sem nem saber para onde, mas iria. Deixaria, desta vez, como agradecimento, que ela o alisasse, como vinha tentando há meses e, assim que ela virasse as costas, adeus. Tamanha ansiedade fez com que não se apercebesse que naquela manhã ela não vinha só. Quando deu pela presença do outro visitante, ele já estava próximo demais. A primeira reação foi a de pensar num grande coice, mas esperou para ver o que ele pretendia, porque, afinal aquele humano lhe pareceu ainda mais apavorado do que ele. E além do mais, era ainda um filhote, e ele jamais faria mal a um filhote, de qual espécie fosse.
O filhote humano, assim que o viu, começou a emitir uns grunhidos agradáveis de se ouvir, e a dizer coisas, com olhares e gestos, que nenhum outro humano conseguira lhe dizer com tanta clareza e suavidade! – Quem é este? Perguntou, surpreso, à jovem humana, esquecendo que ela não poderia entender a sua pergunta. A jovem humana afastou um pouco o filhote, apreensiva. – Cuidado, meu filho! Ele tem o olhar bondoso, mas ainda não é confiável. Nunca me deixou acarinhá-lo. Devemos ter paciência, até fazê-lo entender que pode confiar em nós.
Naquela manhã nem sentiu que a coleira estava ainda mais frouxa que o costume, pela dificuldade que a humana tinha em segurá-la, com o filhote no colo. Na verdade, nem sentiu quando lhe tiraram a coleira, em algum dos dias seguintes. Também não percebeu quando e porque decidira ficar. Não se questiona intuição. Aos poucos, à medida em que ia se permitindo acarinhar, ia também ganhando a liberdade de caminhar sozinho, a cada dia um pouco mais, enquanto os dois humanos se sentavam no chão (às vezes até se deitavam) felizes da vida.
Um dia, eles trouxeram um terceiro humano. Não se assustou, nem se esquivou. Por algum estranho motivo confiou, afinal, estava solto e não via nenhum laço nas mãos daquele humano, que estava naquele dia segurando o filhote. Daria tempo de correr, se necessário.
- Viu, meu amor? A alegria do nosso filho quando está ao lado dele? Nem parece aquele serzinho tão perdido em seu próprio mundo, numa vida quase vegetativa, de alguns meses atrás. Ele se agita tanto quando o vê, que às vezes me dá uma esperança louca de vê-lo andando, engatinhando que seja, como uma criança normal. Sei que é ilusão minha ainda, mas quase posso sentir que suas perninhas estão se enrijecendo. E veja como eles se comunicam com o olhar. Parece que se tornaram grandes amigos. A mesma doçura, a mesma sintonia.
- Sim, eu vejo. Agora entendo porque você se dedicou tanto a este cavalo, já desenganado. Você sempre me dizia que ele era um verdadeiro campeão e conseguiria. Conseguiu mesmo. Os dois conseguiram. Você pressentiu que ele poderia ser a salvação para o nosso filho e estava certa. Será que ele deixaria que eu o colocasse no seu dorso, só um pouquinho? Só uma voltinha, bem devagar?
- Sim! Eu deixo! Eu deixo! Diga a eles que eu deixo! Você pode, meu amigo, você pode me cavalgar quantas vezes quiser.
E foram muitas. E são muitas. E depois das cavalgadas, quando os humanos voltam às suas casas, todo o haras é só seu, todo o chão e o verde prado são seus, e todas as corridas, pelos ao vento, são suas...
(imagem da Internet)
Tudo o que ele mais ambicionava era ter o dorso livre. Sonhava todas as noites com um verde prado onde corresse, pelos ao vento. E toda manhã, ao vestirem sua incômoda armadura, lá ia ele para a sua batalha cotidiana.
Às vezes, uma lágrima silenciosa marejava os seus grandes olhos cansados, quando da lembrança de sua infância feliz, do leite quente da mãe, dos exercícios diários, da musculatura se desenvolvendo depressa, e depois a adolescência arrojada, onde se esmerava em ser o melhor, o mais rápido, o mais forte. Quem sabe quem seria se não tivesse se esmerado tanto? – Hoje, talvez mais feliz – pensava . A vida cobra caro de quem se propõe a tanto e falha em tudo...
Uma chicotada o arrancava sempre desses torpores temporários. Apressava o passo, esticando as pernas que já bambeavam. O calor escaldante e a carga pesada deveriam lhe doer, mas já não doíam. Quase nem sentia mais o próprio corpo. Nem sabia dizer se vivia a realidade ou algum dos frequentes pesadelos. Comia quando lhe deixavam e bebia de águas quentes e sujas, mas nem isso lhe importava. Via, quase indiferente, os músculos cada dia mais flácidos, a pelagem rareando, feridas abertas pelas picadas de insetos. A velhice não o amedrontava, o fracasso sim. O medo de morrer sem sentir a plenitude de ser, ao menos por um dia, livre. Trabalhara tanto na vida e nunca o fizera para si mesmo, nunca por prazer. Quando jovem fora muito requisitado, pela sua força e agilidade, a executar tarefas que agora lhe pareciam todas despropositadas.
- Se eu pudesse recomeçar o faria mais docilmente – ponderava, nas poucas horas de descanso que lhe permitiam. – Quanto mais dócil o escravo, mais discreta e consequentemente mais leve é a sua escravidão, porque não se exige muito de quem nada ambiciona. Os seres como eu, rebeldes, intempestivos, indomáveis, são os mais exigidos, mais testados nos seus limites.
Lembrava-se de quantas vezes ouvira gritarem, das arquibancadas: - Campeão! Campeão! - E era bom, mas efêmero o prazer, porque sabia que depois das corridas viriam treinamentos mais e mais pesados. Um campeão deve estar sempre preparado para batalhas maiores e ele sempre estava. Até o fatídico dia em que se rebelou, e derrubou de cima de si, quem lhe fincava sem dó as esporas. Ele não conseguia entender porque lhe machucavam para que corresse mais, se ele sempre soubera executar muito bem o seu ofício. – Tão desnecessárias certas demonstrações de poder que os humanos têm – ressentia-se.
Depois do primeiro vieram outros e ninguém mais conseguia permanecer nas suas costas. Apanhara muito dos que pensavam que desta forma o domariam, mas quanto mais apanhava, mais certeza tinha de não mais permitir que humanos o cavalgassem. Enfim, desistiram dele e o venderam a um humano que decidira usar contra ele mesmo a sua própria rebeldia. Passou a integrar um estranho grupo de escravos supostamente indomáveis, que se sujeitavam a simular grandes espetáculos de derrubadas de humanos. A admiração pela valentia dos colegas, no primeiro dia de casa nova, caíra por terra ao perceber o artifício usado pelos humanos, para despertar nos pobres aquela reação. Não era valentia, era dor. É certo que passou a se alimentar melhor, sem aquelas dietas sofridas, pois se no passado se fazia necessária uma silhueta delgada, nesta nova, a aparência deveria ser a de robustez. Porém, só ele e os colegas sabiam o quanto lhes custava cada refeição e cada pinote.
Quando já estava muito famoso em seu novo ofício de derrubar humanos, acontecera um triste fato que, de um lado o libertaria daquela prisão mas, por outro o jogaria definitivamente na roda dos excluídos: um humano, mais atroz que os costumeiros, fincara tão fortemente as esporas em seu baixo ventre, que o tiraria para sempre daqueles humanos espetáculos de horror. Nunca mais o campeão das corridas! Nunca mais o invencível dos rodeios! E pior, nunca mais o precioso reprodutor que se orgulhava de ser. Agora tornara-se um qualquer, abandonado às mais terríveis provações.
Passara a puxar carroças e, em cima delas, os humanos, juntamente com as mais variadas e pesadas tralhas . Não havia mais como espernear, não adiantava mais empinar o dorso, nenhuma manobra o livrava dos seus grilhões. Daquela valentia toda só lhe restara o cansaço. Pouco a pouco fora perdendo todos os seus desejos, sobrando-lhe apenas dois: o de ainda poder correr livre, nem que fosse no seu último dia de vida, e o de conseguir vingar-se de um só humano que fosse.
Como tantas coisas inexplicáveis, com ele acontecia sempre que as guinadas de sua vida fossem à custa de intenso sofrimento físico. Desta vez não fora diferente: o seu atual humano sentira-se mal durante uma das descargas e fora socorrido por uma multidão, assustando-o tanto que ele saíra em disparada pelas ruas, carregando consigo a carroça vazia. De repente, o silêncio e a escuridão. Soubera depois que um caminhão o atropelara, atingindo fortemente as suas patas traseiras e destruindo completamente a carroça. Depois o arrastaram para a calçada e o jogaram numa caçamba. As patas doíam muito, mas a sensação de liberdade lhe enchia de louca euforia. Tanta, que a sua vontade era a de sair correndo naquele mesmo instante. Não pôde. Adiaria ainda um pouco mais, até que estivesse em condições de andar.
- Acho que teremos de sacrificá-lo – disse o veterinário à jovem que o assistia no engessamento. – Muito dificilmente ele voltará a andar. Uma fratura como esta pode impossibilitá-lo para sempre de trabalhar.
- E porque ele deveria ainda trabalhar? – respondeu a jovem. Não vê que ele já está velhinho e o seu dono já está morto? Ele não tem mais ninguém no mundo. Vamos fazer o que for possível por ele e deixar que a natureza decida o seu momento de partir.
Ah! Sensações desencontradas passavam pela sua cabeça agora! Tudo o que ele queria era fugir e nunca mais ouvir a voz humana e, no entanto, era uma humana quem decidia se ele viveria ou não! – O que ela faria com ele, depois que sarasse? De que maneira ela o machucaria ainda? Sim, estava claro para ele que ela estava lhe dando uma chance de viver para, evidentemente, tornar-se a sua dona, e machucá-lo de alguma maneira. Mas, se houvesse uma só chance dele ser curado, então ele faria qualquer coisa para cooperar e, no momento, permanecer imóvel era a atitude mais sensata. Depois pensaria num modo de fugir dela. Ou de derrubá-la na primeira oportunidade.
Os meses seguintes se arrastaram, penosamente. A jovem humana conseguira que ele fosse levado para um haras abandonado e o visitava, todas as manhãs. Colocava-lhe uma coleira, não muito apertada, e o obrigava a fazer curtas caminhadas, depois o deixava pastar tranquilamente, enquanto ambos tomavam sol.
– O sol é bom para fortalecer os ossos – dizia-lhe, com voz suave.
– Sim, eu sei – ele pensava, nunca desgrudando os olhos da baia, onde permanecia preso o restante do dia. – Eu sei pra que serve o sol e sei pra que serve um haras. Mas, ela está muito enganada se pensa que eu ainda trabalharei para ela de alguma forma. Nem posso mais e nem quero. Antes, eu a matarei. – E olhava nos olhos dela, como a implorar que o deixasse viver em paz os seus últimos anos de vida. Ele não era um assassino. Não queria ser!
Um belo dia (sim, aquele dia estava muito belo) ele, já completamente curado, a esperava em pé e disposto, na porta da sua baia, quando ela chegou. Aquele seria o seu último dia ali, estava decidido. Iria embora, sem nem saber para onde, mas iria. Deixaria, desta vez, como agradecimento, que ela o alisasse, como vinha tentando há meses e, assim que ela virasse as costas, adeus. Tamanha ansiedade fez com que não se apercebesse que naquela manhã ela não vinha só. Quando deu pela presença do outro visitante, ele já estava próximo demais. A primeira reação foi a de pensar num grande coice, mas esperou para ver o que ele pretendia, porque, afinal aquele humano lhe pareceu ainda mais apavorado do que ele. E além do mais, era ainda um filhote, e ele jamais faria mal a um filhote, de qual espécie fosse.
O filhote humano, assim que o viu, começou a emitir uns grunhidos agradáveis de se ouvir, e a dizer coisas, com olhares e gestos, que nenhum outro humano conseguira lhe dizer com tanta clareza e suavidade! – Quem é este? Perguntou, surpreso, à jovem humana, esquecendo que ela não poderia entender a sua pergunta. A jovem humana afastou um pouco o filhote, apreensiva. – Cuidado, meu filho! Ele tem o olhar bondoso, mas ainda não é confiável. Nunca me deixou acarinhá-lo. Devemos ter paciência, até fazê-lo entender que pode confiar em nós.
Naquela manhã nem sentiu que a coleira estava ainda mais frouxa que o costume, pela dificuldade que a humana tinha em segurá-la, com o filhote no colo. Na verdade, nem sentiu quando lhe tiraram a coleira, em algum dos dias seguintes. Também não percebeu quando e porque decidira ficar. Não se questiona intuição. Aos poucos, à medida em que ia se permitindo acarinhar, ia também ganhando a liberdade de caminhar sozinho, a cada dia um pouco mais, enquanto os dois humanos se sentavam no chão (às vezes até se deitavam) felizes da vida.
Um dia, eles trouxeram um terceiro humano. Não se assustou, nem se esquivou. Por algum estranho motivo confiou, afinal, estava solto e não via nenhum laço nas mãos daquele humano, que estava naquele dia segurando o filhote. Daria tempo de correr, se necessário.
- Viu, meu amor? A alegria do nosso filho quando está ao lado dele? Nem parece aquele serzinho tão perdido em seu próprio mundo, numa vida quase vegetativa, de alguns meses atrás. Ele se agita tanto quando o vê, que às vezes me dá uma esperança louca de vê-lo andando, engatinhando que seja, como uma criança normal. Sei que é ilusão minha ainda, mas quase posso sentir que suas perninhas estão se enrijecendo. E veja como eles se comunicam com o olhar. Parece que se tornaram grandes amigos. A mesma doçura, a mesma sintonia.
- Sim, eu vejo. Agora entendo porque você se dedicou tanto a este cavalo, já desenganado. Você sempre me dizia que ele era um verdadeiro campeão e conseguiria. Conseguiu mesmo. Os dois conseguiram. Você pressentiu que ele poderia ser a salvação para o nosso filho e estava certa. Será que ele deixaria que eu o colocasse no seu dorso, só um pouquinho? Só uma voltinha, bem devagar?
- Sim! Eu deixo! Eu deixo! Diga a eles que eu deixo! Você pode, meu amigo, você pode me cavalgar quantas vezes quiser.
E foram muitas. E são muitas. E depois das cavalgadas, quando os humanos voltam às suas casas, todo o haras é só seu, todo o chão e o verde prado são seus, e todas as corridas, pelos ao vento, são suas...
(imagem da Internet)