UM CONTO DE COELHO NETO (escrito nos tempos do Brasil Império.)

Henrique Maximiano Coelho Neto (Caxias, 21 de fevereiro de 1864 — Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1934) foi um escritor (cronista, folclorista, romancista, crítico e teatrólogo), político e professor brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras onde foi o fundador da Cadeira número 2.

CO-PARTICIPANTE DE UM LIVRO COM OLAVO BILAC DE ONDE SAIU O CONTO ABAIXO:

"QUEM TUDO QUER TUDO PERDE"

—Parece que bateram! — disse o carvoeiro.

—Foi o vento, — respondeu a mulher.

Efetivamente, a velha cabana, levantada junto às primeiras árvores da floresta, parecia gemer, e tremia abalada pelo vendaval, que levantava, em torvelinho, as folhas secas, arrancava robustas árvores, deixando-as tombadas, com as raízes retorcidas à flor da terra.

Os filhos do carvoeiro, três rapazinhos e uma menina, que era a mais nova, cercavam-no, pálidos de medo, persignando-se toda vez que um relâmpago alumiava a cabana.

A chuva jorrava com fragor e na floresta crescia o barulho das árvores.

De novo o carvoeiro disso:

—Parece que bateram! Talvez seja algum viajante fugindo à tempestade!

Nenhum dos pequenos se atreveu a ir à porta, que rangia aos empurrões do vento.

A pequenita, porém, enchendo-se de coragem, decidiu a ver se havia alguém.

Justamente chegava à porta, quando, de novo, bateram clamando:

—Dai-me um agasalho, pelo amor de Deus!

Sem hesitar, a pequenita virou o ferrolho, e, com uma lufada violenta, ao clarão de um relâmpago, um velho precipitou-se no interior humilde.

Era alto e magro, estava coberto de andrajos. No lugar em que se deteve ainda atordoado, ficou uma poça d’água, tão encharcado estava.

O carvoeiro levantou-se para recebê-lo; o velho, depois de abençoar a pequenita, abeirou-se do lume, tiritando, a falar da devastação que a tempestade ia fazendo por aquelas terras.

Deram-lhe do que havia no armário: pão, queijo e frutas, e o peregrino, confortado, tomando ao colo a pequenita, pôs-se a afagá-la carinhosamente.

Lá fora a tormenta continuava a rugir.

—Habitais um sítio muito arredado e triste, disse o velho carvoeiro.

—É verdade, é bem triste! Dá-me a floresta que vendo, a água que bebo, e a caça de que me nutro. O lugar é melancólico, mas nunca nos faltou o necessário, porque o meu trabalho o sabe tirar das árvores e das tocas.

Depois de um silêncio, em que pareceu meditar, o velho disse, alisando os cabelos da pequenita:

—Tendes, entretanto, a fortuna muito perto de casa. Na caverna da floresta há um tesouro guardado desde os tempos do rei Salomão. Quem lá for, e tirar, de cada vez, quando possa conduzir sem fadiga, tornará ao lar tranqüilamente; aquele porém que se exceder na carga, terá no próprio sítio o castigo da ambição.

—O que dizeis é verdade!? — exclamou o carvoeiro alvoroçado.

—Só a verdade vos digo, — afirmou o velho.

Os pequenitos, que tudo ouviram, logo resolveram visitar, na manhã seguinte, a caverna da floresta em procura do tesouro.

Caindo a noite, amainada a borrasca, o velho, apesar das instâncias do carvoeiro e da mulher, tomou o cajado, depois de agradecer a hospedagem e de abençoar a pequenita.

Na cabana ninguém dormiu; e, aos primeiros albores da madrugada, saíram todos — o carvoeiro, a mulher e os três rapazitos.

A pequena ficou para guardar a casa e preparar a refeição.

Embrenhou-se a família. Cada qual levava um saco, contando regressar com grande cópia de ouro.

Chegaram a caverna, que ficava em sítio temeroso, e vagarosamente, penetraram.

Bem ao fundo viram como um monte de brasas que topetava com a abóbada — eram luzentes barras de ouro.

Rojaram-se todos, e, esquecidos das palavras prudentes do velho, puseram-se a encher os sacos, sempre achando pouco o que guardavam.

O carvoeiro levantou-se, e, com esforço, aos arrancos, arrastou seu saco até o limiar da caverna, sem poder erguê-lo, tão superior às suas forças era a carga.

A mulher mal se podia mover, tirava o seu saco aos empuxões, arquejando; o mesmo faziam os pequenos com o exemplo dos pais.

Um deles, porém, recordou as palavras do velho; mas o carvoeiro irritou-se:

—Ora, o velho... se bem andou, longe vai! Quem sabe se eu me havia de abalar de casa por uma barra de ouro! Temos a fortuna à mão, tolos seremos se a não aproveitarmos!

Lentamente, esforçadamente, chegaram ao limiar da caverna, mas logo se sentiram presos.

Os pés afundaram no solo alongando-se em raízes, os corpos mudaram-se em troncos, os braços estenderam-se em folhagem, e transformados em árvores, ali, ficaram, bracejando ao vento.

Debalde a pequenita esperou-os para o jantar. Em vez deles, chegou a noite.

Na manhã seguinte, foi ela à floresta, procurou-os, chamou-os, e, guiando-se pelas pegadas que haviam ficado na terra mole, foi ter à caverna.

Passou pelas árvores, sem perceber que eram os seus parentes, e estacou deslumbrada diante do cógulo de ouro.

Alegre, rindo, apanhou três barras das mais luzentes; sentindo, porém, o peso demasiado, e, lembrando-se da recomendação do velho, desfez-se de uma, e, folgadamente, ia saindo, quando ouviu as vozes escarninhas:

—Por tão pouco não valia a pena teres vindo de tão longe! Volta à caverna, e toma outras barras de ouro!

Sem dar ouvidos à sedução, a pequenita passou as árvores, e regressou à cabana.

No dia seguinte, tornou à caverna, e com mais duas barras voltou contente. Repetindo a viagem durante meses, tornou-se dona de todo tesouro.

Uma tarde, sentada à porta da cabana, chorava, quando viu vir uma velhinha que parava de instante em instante, fatigada.

Convidou-a a descansar um momento, e deu-lhe do que tinha, e enquanto comia, a velha pediu-lhe a razão das lágrimas que che arrasavam os olhos.

—Choro os que perdi, meus pais e meus irmãos. Sou rica, riquíssima! Tenho mais ouro nesta cabana do que tem o rei no seu erário; dá-lo-ia todo, de bom grado, pela antiga pobreza, se, com ela, voltassem os que perdi!

Enquanto ela chorava, ia a velha, astutamente, recolhendo as suas lágrimas em um pequenino vaso de cristal. E disse-lhe, por fim:

—Vamos à caverna! És digna de ser amerceada!

E logo, ágil como se a levassem asas invisíveis, a velhinha transportou-se da cabana à floresta, levando a pequenita.

À entrada da caverna, pôs-se a aspergir as árvores com as lágrimas, e logo se desfazia o encanto, e, um a um, reapareceram o carvoeiro, a mulher e os rapazitos.

Antes, porém, que eles se tirassem do espanto, disse a velha á pequena:

—Aqui os tens! Leva-os contigo, e que lhes fique na memória este caso! Toda a ambição é prejudicial. O homem não deve tentar o impossível: quem muito quer, tudo perde; e é com perseverança e trabalho que se consegue a fortuna.

Como um fumo que se dissolve, a velha desapareceu, e a pequenita, abraçando os pais e os irmãos, reconduze-os à cabana, onde lhes mostrou a riqueza acumulada com paciência se sem fadiga, com a qual passaram a viver na cidade, com o fausto que o ouro lhes garantia.

E o carvoeiro, bendizendo o coração da filha, referia-lhe os tormentos que haviam sofrido, ele e os seus, durante o tempo que viveram metamorfoseados em árvores.

COELHO NETO 1864/1934
Enviado por Pacomolina em 16/09/2014
Reeditado em 16/09/2014
Código do texto: T4964688
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