O CAÇADOR ARREPENDIDO

Jeremias se preparou com cuidado para a caçada. A espingarda já estava limpa de véspera e no embornal foi colocando a matula, mais uma caixa de munição, a faca, o canivete, algumas palhas secas de espiga de milho e um pedaço de fumo. Não passava sem seu cigarrinho de palha durante as longas horas de espera em suas caçadas.

Era um caçador solitário. Não gostava de companheiros e tinha seu método particular de caçar. Paciência, muita paciência, horas de espera, escondido, fumando seus cigarrinhos de palha, matutando na vida. Atento ao menor movimento denunciador da presença do animal que pretendia abater com tiro certeiro.

Era ainda de madrugada quando ele se pôs a caminho. Aquela caçada iria ser a mais importante de sua vida. Já havia caçado cobras e lagartos, animais pequenos e grandes. Pacas, tatus, cotias, sim. Bichos de pêlo, de escama e de penas. Codornas sem conta já havia caçado, assado e comido pelos campos de suas expedições. Caça esperta, como veados, lobos-guarás e porcos-do-mato. Animais mansos e indefesos, como preguiças, antas, tamanduás. E perigosos, também, que Jeremias não era caçador de deixar um animal escapar da mira de sua espingarda: gatos-do-mato, jaguatiricas, onças. Sua casa era “enfeitada” com as peles, cabeças empalhadas e retratos que mostravam suas proezas.

Lá vai, portanto, o famoso caçador na busca de mais um troféu. O dia clareava quando chegou na Encruzilhada das Bruxas. O povo dizia que por ali passava tudo quando é tipo de seres sobrenaturais. Bruxas, assombrações, o Saci-Pererê, a Maria Engomada. As crianças sabiam que uma das estradas daquela encruzilhada ia acabar no Reino da Fantasia.

“É um besteirol sem fim. Todo mundo fica imaginando coisas, histórias, mas nunca vi um fantasma, nem duende, nem nada. A última fantasia em que acreditei foi no Papai Noel, quando era criança, mas todo mundo sabe que ele também não existe.” —

Assim pensando, Jeremias dirige-se a um local apropriado para esperar o animal que deseja caçar. Desta vez, sua empreitada é especial: irá caçar uma rena. Animal difícil, espécie de veado com uma galhada enorme. Os companheiros, principalmente os caçadores mais velhos, contam que elas costumam aparecer ali por perto da encruzilhada por ocasião do Natal. Dizem também que elas pertencem ao Papai Noel.Que são usadas para puxar o trenó do velhinho, carregado de presentes. Ninguém jamais se atrevera a caçar uma rena, pois havia um profundo respeito pela lenda.

“Que cambada de gente boba. Se Papai Noel não existe, como é que as renas lhe pertencem? Uns velhos barbudos que ainda creditam em Papai Noel,numa carroça puxada por renas. Vou caçar uma e mostrar pra esses panacas quem é Jeremias. Vou ser o caçador mais famoso deste mundo!”. —

Picando o fumo para o seu primeiro cigarrinho de palha, o caçador segue a trilha. Encontra um lugar apropriado, detrás de uma pedra, onde pode ver a estrada se desenrolando, sumindo de vista ao entrar na mata.

Acomoda-se sentando no capim macio e prepara-se para as horas de espera. Pouco sabe sobre renas, a que horas elas pastam, se vêm juntas ou não. Enquanto espera, vai pitando seus cigarrinhos, um após o outro. Antes de terminar um, faz o outro, que acende com a bira do cigarro, pitado até o final. A ponta lhe queima os dedos, de tão pequena.

Fumar é uma maneira que ajuda Jeremias de passar o tempo e espanta também os mosquitos. Aliás, o fedor dos cigarrinhos de palha espanta qualquer bicho, até pessoas. Talvez seja devido à catinga dos cigarros o motivo pelo qual ele nunca teve companheiros. O mau cheiro está na boca, nos dedos, na roupa, e até nos cabelos, porque ele passa constantemente os dedos manchados de fumo na cabeça, num gesto de tirar os cabelos da frente dos olhos.

Pelas quatro horas da tarde, o caçador está impaciente. Já manducou duas vezes, tomou água de seu cantil em mais de uma dezena de ocasiões e ao seu redor estão tocos de cigarro e palitos de fósforos usados para acender seus terríveis “mata-ratos”. Apesar da impaciência, não tira os olhos da estrada e da matinha.

Então, vê! Saindo da sombra das árvores, vinda pela estrada, uma rena! Para Jeremias, não passa de um veado com chifres muito grandes. Tem o porte garboso, caminha calmamente, descendo a estrada, na direção onde o caçador espera, escondido.

Vem chegando, calmamente. Não tem pressa.

“O bicho deve tá de papo cheio, não vem pastando. Quando chegar mais perto...

Preparando-se para atirar, encosta a arma no ombro e olha atentamente, mirando o peito do animal.

Quando está à distância do tiro, a rena pára, de repente. Fareja o ar. Sente qualquer coisa de estranho. É a catinga de fumo dos cigarros de Jeremias que lhe chega às narinas. De faro apurado, a rena se vira, dá meia volta, dirigindo-se para a mata, de onde saíra. Ele vê a caça indo embora, não tem tempo para mais nada, firma a espingarda, puxa o gatilho e...PUM!

O tiro atinge o animal, que tomba na estrada. Sem esperar por mais nada, Jeremias corre na sua direção. Mas antes mesmo de chegar perto, eis que surge, vindo da mata, um velho vestido de roupa vermelha, botas, um gorro esquisito na cabeça. Corre também na direção da rena abatida.

Encontram-se ao pé da rena imóvel, no chão.

— Seu estúpido idiota! — O velho está vermelho de raiva, seus olhos faíscam como duas brasas. — Veja o que você fez! Agora, como vou distribuir os presentes nesta noite de Natal?

Jeremias está bestificado. Reconhece no velho uma figura da qual há muito se esquecera. Que, aliás, pensava ser história para engambelar crianças.

— Mas...mas... é o Papai Noel?

— Claro, seu porqueira. E você me faz esta besteira logo hoje, meu dia mais ocupado do ano.

— O senhor me desculpe, eu não sabia...— o caçador começa a se desculpar.

— Não sabia! Não sabia! É sempre assim. Vocês acreditam em mim quando são crianças, depois crescem, acham que sabem de tudo, e me esquecem. Alguns até me desprezam.

— Esta rena... era sua?

— Claro. Ela e mais aquelas três que estão ali, tá vendo? Estava justamente ajuntando as quatro para atrelá-las ao meu trenó. Tenho que sair logo, pois nesta noite de Natal tenho um monte de presentes para distribuir no mundo inteiro.

O caçador olha para o lugar apontado pelo Papai Noel e vê mais três renas, iguaizinhas à que está abatida, a seus pés.

Ao ver a situação desesperadora de Papai Noel e sentindo remorsos por ter abatido a rena, Jeremias tem um acesso de tosse. Sempre que ficava emocionado era acometido por um desses acessos. Devido aos milhares de cigarros que fumara. Começou a tossir, tossir, não parava mais. Tossindo, punha as mãos no peito, sentindo uma falta de ar. Tosse seca. Revira-se, agacha-se, senta-se no chão. A tosse não passa. Tosse e tosse, até que, cansado de tanto tossir, deita-se no chão. Tosse, tosse e tosse até desmaiar.

Papai Noel ficou ali, sem saber o que fazer. Eis que chega, pulando numa perna só, um negrinho muito esperto.

— Que aconteceu, Papai Noel?

— Este estúpido caçador abateu minha rena, Saci. Agora não posso distribuir os presentes. Nunca me aconteceu coisa igual. Não sei o que fazer.

Saci Pererê, sempre pulando na sua única perninha, chega perto da rena, examina e diz:

— Ela num tá morta, não. O tiro passou de raspão. Ela tá assim desmaiada é por causa do fedor de cigarro do caçador.

E agachando-se perto do caçador, o Saci comenta:

— Agora, esse aqui, num tem jeito, não. Já bateu as botas. Morreu de tanto fumar.

Saltitante, o Saci fala pro Papai Noel:

— Espera um momento, vou ali na mata pegar uma erva e já volto.

Pula que pula, numa rapidez incrível, o Saci some na matinha. Volta daí a instantes com alguns ramos, um cipó e uma flor amarela.

— Esta é a erva cura-tudo. Vamos passar na ferida da rena, ela vai sarar.

Dito e feito. Assim que o Saci esfregou as folhas na orelha da rena, onde a bala passara de raspão, ela abriu os olhos e levantou-se, como se nada tivesse acontecido. Papai Noel abraça o Saci, agradecido.

— Obrigado, Saci, obrigado. Não sei como lhe agradecer esta cura.

— Ara, Papai Noel, não foi nada. Mas se o senhor deixar, eu gostaria de ir no trenó, ajudando na distribuição dos presentes.

Enquanto conversavam, a rena chegou perto do caçador e começou a lamber seu rosto. Jeremias não tinha morrido, como o Saci comentara. Estava num ataque de falta de ar, muito comum a fumantes inveterados. Suas faces estavam púrpuras, e ele não se mexia. Parecia mergulhado num profundo sono. E quando a rena começou a lamber-lhe o rosto, teve um sonho estranho: o caçador viu chegando perto de si, numa fila infindável, todos os animais que havia matado. Todos estavam vivos, e cada um, ao chegar perto dele, dava uma lambidela de amor no seu rosto. Coelhos, pacas, antas, macacos e micos, a jaguatirica, as onças, até um enorme jacaré esfregou seu focinho úmido no rosto do caçador.

Aos poucos, à medida que o caçador sentia a energia que fluía de todos os animais, revigorando-lhe o corpo, devolvendo-lhe a consciência, foi se sentindo outro. Voltou a respirar normalmente e acordou. Viu, com grande alegria, a rena lambendo-lhe as mãos, e naquele momento, teve consciência de quanta maldade havia praticado na sua vida de caçador.

Sentou-se no chão. Papai Noel e o Saci Pererê se aproximaram. Ajudaram-no a se erguer. Sentindo um grande alívio, abraça o velhinho e o pretinho e afaga a rena. Ao ver a espingarda no chão, pega-a e com uma força tremenda, quebra-a pelo meio, entortando o cano e arrebentando a coronha de madeira.

— PAPAI NOEL, vou lhe prometer três coisas.

— Três promessas? Cuidado para não prometer coisas impossíveis de realizar.

— Prometo que, de hoje em diante, nunca mais vou caçar. Prometo que nunca mais vou fumar. E prometo que vou ajudá-lo, todos os anos, a distribuir os presentes de Natal.

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Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 24 de dezembro de 2001

Conto # 133 da série Milistórias -

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/04/2014
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