TETÊU E O ANJO DO PRESÉPIO - Conto de Natal

(Registro EDA 299.511 - Livro 544 - folha 171 de 24/9/2003)

Final de ano. As aulas haviam terminado. Tetêu, que na verdade chamava-se Mateus, mas ganhara este apelido das irmãs maiores, pois quando novinho, respondia ao perguntar-lhe seu nome em breve gagueira:

-Te-te-têu - Estava exultante e seus grandes olhos azuis em seu rosto rosado e bonito, emoldurado por cabelos ruivos, lisos e finos como a palha de milho, brilhavam ansiosos.

Ele acabara de chegar ao sítio dos avós, onde passaria suas tão esperadas férias, e mal podia esperar a hora de poder correr e brincar por aquela vastidão de campos, árvores e morros que se desenhavam a seus olhos.

Beijou os avós, que o amavam. Trocou de roupa, e, apressado, dirigiu-se ao quintal. Tudo para ele era novidade, os avós haviam se mudado recentemente para aquela pequena cidade do interior.

Como era gostoso estar ali! Ele adorava o pomar, onde mangueiras, goiabeiras, cajueiros e uma dezena mais de árvores frutíferas se voltavam para o céu, e em seus galhos abrigavam todo o tipo de pássaros e seus ninhos. Era, sem dúvida, para ele – que vivia em um apertado apartamento no Rio de Janeiro, um lugar encantado.

Fim de ano e também época de festas, o Natal e o Ano Novo se aproximavam e prometiam muitas surpresas mais. Mal pôde conter a alegria quando o avô o chamou a ajudar a montar a árvore de natal e o presépio, símbolos indispensáveis dessa época.

Depois de longo e minucioso trabalho, lá estava aquela linda árvore iluminada e enfeitada com bolas de todas as cores, que a seu pé, Papai Noel deveria depositar os presentes.

Em sua casa, porém, não se armava presépio, até porque o espaço do apartamento não permitia, e aquela representação do nascimento de Jesus exercia sobre ele enorme fascínio. Atento, ajudava ao avô a armá-lo. O senhor cobrira o chão do presépio com areia para imitar o deserto e sobre ele espalhara as dezenas de figuras representativas, que aos olhos do menino pareciam estar realmente vivas.

Algo o atraía especialmente: O anjo da anunciação em porcelana, que, pendurado por um cordão sobre a estrebaria onde a sagrada família adorava o recém-nascido, flutuava com suas asas douradas e sua corneta às mãos.

Para Tetêu aquilo era bastante sugestivo para suas artes, e bastava que não houvesse alguém por perto para que ele girasse o anjo segurando-o pelas asas, que, enroscando e desenroscando no cordão que o prendia ao teto de presépio, dava-lhe uma sensação prazerosa.

A brincadeira furtiva o divertia muito, ele a repetia sempre que possível. Tanto o fêz que em uma das vezes o cordão arrebentou e PAFT!, o anjinho saltou longe. Ele empalideceu, correu apara pegá-lo e maior foi seu susto quando percebeu que uma de suas asas se partira. Em princípio, o menino não sabia o que fazer, e como percebera a aproximação da avó, entrou em pânico. Apressadamente, enterrou o anjo na areia e arrancou o pedaço de cordão que ficara pendente do teto, esperando que os avós não notassem sua falta.

A noite veio e deitado em seu quarto não conseguia dormir pensando no que aprontara. Sabia que a avó tinha grande carinho por aquele anjo; ela mesma dissera durante a armação do presépio que “ele era muito antigo e que pertencera à minha mãe”. Essas palavras não saíam de sua mente, e assim começava a dormir quando escutou uma voz que sussurrava ao seu ouvido:

– Tetêu, Tetêu!

Ele virou a cabeça e grande foi seu espanto ao ver o anjo, que em seu tamanho natural, ou seja, do tamanho dele próprio, o fitava desolado. O menino estremeceu, e passado o susto com voz quase sumida, perguntou:

– Quem é você?

– Sou o anjo do presépio que você, com sua brincadeira, quebrou a asa. – em voz triste e mostrando-lhe a asa que restara:

– Veja como estou. Você não sabe, mas na noite de natal tenho que estar no céu, e só com uma asa como vou poder voar até lá?

Tetêu, arrependido com o mal que causara chorava baixinho e pedia desculpas.

Ao que o anjo com pena, e certo de seu arrependimento:

– Escute, o natal será daqui a 7 dias, se até lá você tiver se comportado bem e feito boas ações, pode ser que minha asa cresça de novo, para corrigir erros temos que fazer o bem e assim, quem sabe, eu possa voltar ao céu. Por enquanto, vou ficar escondido em seu armário e toda noite venho conversar com você. Mas é importante que guarde segredo sobre mim, ou minha asa nunca crescerá. Está combinado?

Tetêu balançou a cabeça concordando, virou para o lado e adormeceu.

No dia seguinte, ainda pensando no anjo, mas imaginando haver sido apenas um sonho, não deu muita importância.

Saiu ao pomar, e caminhando por entre as árvores deparou com um filhote de passarinho muito pequeno e ainda sem penas, caído ao chão e com sua mãe desesperada sem poder levá-lo de volta ao ninho voando ao seu redor. O coração do menino bateu mais forte e ele não pensou duas vezes:

Abaixou-se, pegou o pobrezinho com todo cuidado, colocou-o no bolso de sua camisa, e subindo a mangueira de onde o pobre despencara, devolveu-o ao ninho sob o olhar atento e agradecido da mãe.

Naquela noite deitou-se e como pela manhã olhara dentro do armário e não vira, o anjo estava certo de que tudo não passara de um sonho, mas quando começava a dormir, eis que o anjo, saindo do armário sorrindo, lhe diz:

– Muito bem, Tetêu, você salvou aquele filhote, e isso é bom. – e virando-lhe as costas, mostrou-lhe que a asinha voltava aos poucos a crescer e falou: – Continue assim que vamos conseguir. Agora, durma em paz.

E voltou para o armário.

No dia seguinte, Tetêu tornou a olhar no armário e como não o visse perguntou:

– Você está aí? Ou será que só aparece no meu sonho?

Ao que uma voz o respondeu bem baixinho:

– Estou sim, só que estou visível quando quero, pois alguém da casa pode abrir o armário e me descobrir.

O menino teve então a certeza de que o anjo era real, e que não poderia contar a ninguém sobre ele, até porque não iriam acreditar.

O dia seguinte estava ensolarado e quente. Seu avô costumava pescar em um riacho próximo e resolveu levá-lo consigo. À beira moravam famílias de pescadores que eram pobres e até nem tinham muito para comer quando a pescaria não era boa.

A avó do menino preparara, para ele e o avô, um lanche reforçado e enquanto ele comia seu sanduíche, reparou que uma menininha maltrapilha o mirava, e em seu olhar, Tetêu pôde ver que tinha fome. Seu coração voltou a disparar, e pegando outro na cesta ofereceu-lhe:

– Tome, pegue para você. Eu tenho outros que minha avó preparou para mim.

A menina a essa altura era só boca, e com duas dentadas o engoliu. Beijou o garoto na face e saiu cantarolando. O menino teve vontade de rir, mas, imaginando como ela deveria estar faminta, sentiu-se feliz com o que fizera.

Mal podia esperar anoitecer para ver o anjo e sua asa. Sabia que tinha sido bom, mas não dera o sanduíche à garotinha esperando recompensa, fizera espontaneamente o que seu coração pedira.

Quando voltou a casa lembrou-se do anjo que enterrara na areia do presépio e resolveu olhá-lo para ver se sua asa também crescera como a do anjo do armário. Grande foi sua decepção quando o desenterrou e viu que ele continuava somente com uma asa, a outra não dava nem sinal de crescimento. Então pensou:

– O anjo do armário está me enganando, ou ele não é o mesmo do presépio.

Assim decidiu tomar satisfações. Entrou no quarto, abriu a porta do armário, chamou por ele e não obteve resposta. Naquela noite não conseguia dormir, e desistiu de espera-lo. Quando ia adormecendo, o anjo surgiu e nada lhe disse, apenas mostrou-lhe a asa agora mais crescida e quando o menino ia lhe falar, desapareceu no armário fazendo-o dormir profundamente.

Três dias e três noites se passaram sem que ele lhe aparecesse. E sem que a asa do anjo enterrado no presépio desse sinal de crescimento. Tetêu a cada dia mais se apavorava. A véspera do Natal seria no dia seguinte, e ele sabia que quando todos, inclusive seus pais e suas irmãs que haviam chegado, tias, primas e vizinhos convidados dos avós para a ceia de Natal, se reunissem à frente do presépio para orar e acender a grande vela azul, certamente a avó daria falta do anjo da corneta, já que até então ela não reparara sua ausência, pois, muito atarefada, nunca parava para observar o presépio. Então ele teria que confessar o que fizera. Isso não lhe agradava. Seu pai era rigoroso, e o fato, com certeza, lhe custaria muitos dias de castigo antecipando o fim de suas férias.

Naquela manhã, quando descia a rua que levava ao pequeno povoado a comprar pão como sua avó pedira, viu ao chão uma carteira masculina. Pegou-a e reparou que não tinha nenhum enderêço, apenas dinheiro, muito dinheiro, bastante para comprar a bicicleta que “Papai Noel” o negara todos aqueles anos. Não pensou duas vezes: Enfiou a carteira por dentro da camisa e saiu pensando no que poderia fazer com todo aquele dinheiro, nas coisas boas e nos presentes que poderia pedir à mãe para comprar para todos.

Caminhou alguns metros e deparou com um casal de senhores que parecia procurar algo. Ia passar de largo, pois pressentiu que buscavam a carteira, e ele não tinha feito nada de mal, apenas a encontrara. Ouviu então a senhora com voz chorosa dizer ao senhor:

– E agora, meu velho? Como vamos fazer para comprar os remédios que nosso neto tanto precisa para tratar e se livrar de sua doença? Oh! meu Deus, como vamos fazer?

O coração do menino voltou a bater forte e ele mesmo vendo o sonho da bicicleta se afastar, não pensou duas vezes:

– Por acaso estão procurando por essa carteira?

– Sim, meu filho. – respondeu a senhora mãos postas ao peito.

Tetêu entregou- a e a senhora, agradecida:

– Graças a Deus! Muito obrigada, meu filho, que os anjos do céu possam realizar todos os seus desejos para o resto de sua vida.

Ele voltou para casa um pouco triste, mas, no fundo, seu coração estava alegre. Talvez nunca viesse a ter uma bicicleta, mas um menino como ele não deixaria de tomar seus remédios e curar sua doença por causa do seu egoísmo.

À noite, quando se deitou, o anjo apareceu-lhe com a asa totalmente crescida e, feliz, lhe disse:

– Obrigado, Tetêu, olhe, minha asa cresceu totalmente, agora posso voltar ao céu e estar ao lado do menino Jesus. Você é um bom menino. Faça um pedido que prometo leva-lo ao Senhor e quem sabe ele se realizará?

Tudo que Tetêu queria era que a asa do anjo do presépio também crescesse, pois ele estava arrependido do que fizera e assim o pediu.

Véspera de natal. O dia amanheceu e a primeira coisa que Tetêu fez foi olhar escondido o anjo enterrado no presépio, e novamente se decepcionou. O anjinho continuava com uma asa somente, a outra não crescera.

Aquele foi um dia de ansiedade e medo, ele não conseguiu nem brincar, passou o tempo todo pensando: O que diria sua avó? E seu pai, o que faria? Sim, pois mesmo que ele não confessasse o que fizera, e não dessem por falta do anjo no momento da oração ou quando fossem desarmá-lo o anjo apareceria e sua culpa também, já que era a única criança em casa.

Veio a noite e com ela a inevitável oração em frente ao presépio antes da ceia de natal. Ele já estava preparado para o pior, resolvera que se alguém desse falta do anjo ele confessaria e aguardaria, resignado, as consequências de sua brincadeira de mau gosto.

Quase meia-noite, todos em frente ao presépio no escuro, e quando sua avó acendeu a vela diante da manjedoura onde o menino Jesus repousava. Com ar desconfiado:

– Engraçado... parece estar faltando algo no presépio...

O menino gelou dos pés à cabeça.

Ela continuou:

– Já sei! É o anjinho da anunciação, onde estará ele? – e virando-se para o marido

– Raul, você o tirou do presépio?

– Não, nem sequer tenho parado em frente a ele, pois teria também dado falta do anjo.

Tetêu então resolveu confessar, e com voz embargada e lágrimas nos olhos:

– Vó, eu escondi o anjo.

– Por que, meu filho?

– Eu brincava com ele sem que a senhora e o vô vissem, fazendo-o rodar até que um dia o cordão arrebentou, ele caiu ao chão e partiu uma das asas.

Ela um tanto zangada, perguntou-lhe:

– E onde está ele?

Tetêu cavou o lugar onde o havia enterrado e enorme foi sua surpresa quando, ao desenterrá-lo, viu que suas asas estavam intactas como sempre estiveram antes da queda. Deus havia atendido ao pedido que ele fizera ao anjo do armário.

Todos riram, achando tratar-se de mais uma brincadeira do menino, mas só ele e o anjo conheciam a verdade, que ele não poderia contar. Ninguém acreditaria.

Assim restou-lhe a certeza de que para Deus nada é impossível. Quando ele assim o quer, e nós fazemos por merecer.

Jogon Santos

Registro EDA 299.511 - Livro 544 - folha 171 de 24/9/2003