A Pedra Azulada
- Tô indo lá no terreno... Ver se vejo alguns biquinhos de lacre.
- Sozinho?
- Quer vir comigo?
- Sua mãe deixou?
- Deixou. Você não quer vir?
- Bem, se ela deixou, acho que a minha não vai se importar.
- Vai não. É rapidinho.
- Não vai caçar?
- Vou nada. Nem tô com o visgo.
- Visgo de jaca, hum..., a maior covardia com os bichinhos. Mas como você não está com o visgo, então eu vou.
O que eles chamavam de terreno, na verdade era uma área grande ou sítio ao final da rua onde moravam. Uma rua sem saída, terminando ao pé de um morro. O sítio era inicialmente plano, em certo trecho em frente à rua. Depois acompanhava a topografia do terreno, com várias elevações seguidas aqui e ali por pontos baixos ou pequenos vales. Foi num desses vales, a uns 400 metros da entrada do sítio, que não tinha muro nem portão, que Rafael resolveu deter-se com Inara, após algumas subidas e descidas.
- Lá está ela, a pedra azulada.
- Quê?, indagou Inara.
- Estive anteontem aqui e ela estava do mesmo jeito, com essa cor linda.
- Puxa, é linda mesmo, concordou Inara, observando que as rochas menores ao lado da pedra não tinham a mesma coloração. Será que não tem nenhuma tomada por baixo dela?
- Você está vendo por aqui qualquer vestígio de instalação elétrica, Narinha?
- Não, mas pode ser algum tipo de iluminação artificial ou através de energia solar.
- Aprendeu essas coisas com seu pai e vem logo dizer pra gente, não é, menininha?, debochou Rafael.
- Deixa de ser bobo, menino. No jardim da sua casa mesmo tem algumas luzes assim.
- Mas não é, não, Narinha. É a luz dela mesmo.
- Será que ela ficou brilhando assim desde a primeira vez que você a viu?
- Foi isso que quis conferir.
- E não me disse nada...
- Queria te fazer uma surpresa.
E Inara percebia que, à proporção que conversavam, sentia-se mais radiante, respirando melhor, com mais força nos músculos e mais equilíbrio, a cabeça mais leve. E achando o pequeno Rafael muito mais belo do que sempre lhe pareceu.
E ela não podia suspeitar que sensações bem parecidas com as que sentia tinham sido vividas por Rafael desde que viu a pedra azulada pela primeira vez. Contudo, pequeno ainda, mas sempre muito cuidadoso, Rafael resolveu não compartilhar esses sentimentos com ninguém. Sentimentos que de alguma forma permaneciam com ele depois de ter visto a pedra. Duvidava de que pudesse senti-los de novo com a mesma intensidade. O que verificava agora que acontecia. Pensava que podia resolver qualquer problema de matemática ou ser capaz de escrever um belo poema, o que antes não conseguia.
Inara por sua vez achava-se capaz de desenhar e costurar um belo vestido de casamento para qualquer pessoa ou ensinar aos seus colegas tudo o que aprendia na escola.
De repente, depois de verificar no céu um azul tão intenso e brilhoso como nunca tinha visto, Inara nota que Rafael está com as mãos elevadas à meia altura como se estivesse fazendo uma oração ou recebendo alguma graça. Ela se sente mais feliz e para por um momento de pensar. Rafael volta-se então para ela e, olhando na direção de um ponto pouco acima da cabeça da menina, começa a se despir. Tira a camisa, a bermuda e por fim a cuequinha listrada que ganhara de sua mãe como presente de aniversário. Fica inteiramente nu diante de Inara. Que, sem tirar seus olhos dos deles e sem se assustar com o brilho incomum nos olhos do amiguinho, começa também a retirar toda a sua roupa: o vestidinho rodado sem mangas, a blusinha de malha sobre o vestido e a calcinha amarela com borboletinhas azuis. Ficam inteiramente nus, o menino diante da menina. Mas em momento algum seus olhos se detêm em qualquer parte de seus corpos. Ao contrário, procuram o espaço, o azul inusitado do céu, a copa das árvores. Sem deixarem de se achar sob o fascínio e a influência do azul da pedra. E nesse momento têm a sensação de que estão voando. E de que, não podendo ir muito longe, têm permissão para passar sobre o bairro em que residem e por toda a extensão da rua em que moram. Não existe a preocupação de que pudessem ser surpreendidos por alguém que eventualmente estivesse por ali. Se pudessem pensar em alguma coisa, teriam imaginado que havia uma parede de vidro grosso não transparente que se estenderia até um ponto no espaço a partir do qual eles não poderiam ser vistos.
Ao regressarem desse voo, que poderia ter durado um século ou um segundo, Rafael e Inara vestem-se de novo e se afastam da pedra azulada sem olhar para trás. Sentindo-se mutuamente protegidos um pelo outro, caminham em silêncio até à parte do sítio frontal à rua. Deslocam-se pela calçada sorrindo bastante por dentro, mas revelando por fora apenas uma expressão de tranquilidade.
- E aí, gostou da surpresa?
- Nem tenho o que falar. Nunca senti o que estou sentindo. Uma sensação tão gostosa... de vida.
- Já pensou se todos pudessem ver aquela pedra azulada?, indagou Rafael.
- Todo mundo ia ficar como a gente. Você sentiu tudo isso desde o primeiro dia?
- Desde o primeiro dia. Só que agora foi muito mais intenso.
- E se falássemos para os outros meninos e meninas, para as outras pessoas?
- Não é que eu não queira, Inara, mas parece que não devemos. Em primeiro lugar, deveríamos saber se a pedra ficaria azulada com todos os que a vissem.
- Se ficou com a gente...
- Sim, mas certamente muitas pessoas já passaram por ela e não notamos nada de novo. Eu mesmo, quando caçava passarinhos, já passei várias vezes com outros meninos por ali.
Uma cachorrinha atravessa de repente a rua e um carro vem em sua direção em alta velocidade. Inara percebe a cena, olha na direção do carro e este começa a perder imediatamente a velocidade até parar a certa distância da cachorrinha. Dentro do carro dois rapazes com braços musculosos e tatuados parecem discutir enquanto a cachorrinha atravessa tranquilamente a rua.
Um dia após a visita com Inara à pedra azulada, Rafael vai com sua mãe à casa de seu primo, sobrinho dela, com 24 anos. Portador de um melanoma num dos membros inferiores, o rapaz havia sido operado, mas a metástase não fora evitada. Sete dias após a ida de Rafael com sua mãe à casa do primo com câncer, exames médicos davam como totalmente afastada a metástase antes confirmada.
E fatos desse tipo foram se sucedendo. Rafael e Inara faziam tudo para que não chamassem atenção com as coisas boas que proporcionavam a todos. Temiam “ficar na berlinda”, serem tidos por todos como diferentes, terminarem como garotos propaganda de um produto qualquer ou serem entrevistados por uma rede nacional de TV num programa jornalístico. E estavam conseguindo a necessária discrição. Mas sabiam que não seria por muito tempo, tal a velocidade com que as ações se sucediam.
- Não pode ser assim, Rafael. Você tem razão. É muita felicidade para duas pessoas, ou crianças.
- E o pior é que se ela fosse estendida a todos, todos sentiriam o mesmo. Não dá pra ser feliz o tempo todo. Pelo menos aqui.
- Aqui aonde, Rafael?
- Na Terra, ora!
Nesse exato momento Inara sentiu uma pontinha de febre. E Rafael, após sua frase, espirrou umas duas vezes. Os dois então correram para a pedra azulada e verificaram com surpresa que ela estava da cor das rochas menores ao seu lado.
- Ufa, Rafael. Tudo normal agora.
- Ufa, Narinha.