O GATO DE RUA

O telhado estava bastante úmido quando nasci, embora eu desconhecesse essa sensação térmica naquele instante maravilhoso de minha entrada no mundo. Bem, nem tão maravilhoso assim, já que gotinhas de chuva, que eu ainda não sabia o que era também, claro, salpicavam as telhas e ensopavam meu frágil corpinho. Aquilo me pareceu estranho, é evidente, como as demais novas sensações que se me foram apresentando.

Como éramos cinco irmãos, vindo ao mundo poucos segundos um após o outro, nossa mãe teve que nos carregar, um a um, para um lugar seco e abrigado do frio. Não era um trabalho fácil para ela, reconheço, mas necessário e importante devido às circunstâncias. Ela nos abocanhava delicadamente e cuidava para não nos machucar com seus dentes afiados, descia do telhado até um terreno baldio carregando cada um de nós na boca e, apressada, nos colocava em meio a uns trapos encontrados debaixo de uma marquise num beco esquisito, escuro e silencioso. Voltava em seguida para o telhado e repetia, cheia de paciência, o mesmo ritual de apanhar-nos com sua boca gentil para refazer o percurso até o abrigo. Quando chegou minha vez de ser conduzido, e eu fui o último a ser levado por ela, parecia que o frio da noite iria acabar comigo. Eu me sentia como se estivesse no limiar da porta aberta de uma geladeira, e aquela estranha frieza após deixar o ventre aconchegante e morno de minha mãe me deixava confuso e atarantado. Mesmo não enxergando nada porque meus olhos ainda estavam fechados, afinal de contas eu era apenas um recém nascido, meus fracos miados denunciavam o desconforto por que passava. Carregado por ela, senti-me protegido, apesar de tudo.

Longe do telhado e do frio, agora sob o doce corpo de minha mãe, buscávamos com avidez suas tetas fartas, cinco boquinhas famintas em desespero por um pouco do leite materno tão amorosamente oferecido por ela. Depois, saciada a fome, adormecemos emaranhados uns nos outros e inconscientes do que se passava ao redor de nosso diminuto universo ali no beco escuro, entre os trapos jogados por alguém. Às vezes eu despertava por causa do movimento de meus irmãos para conseguir um melhor cantinho mais aquecido ao lado de minha mãe ou porque algum de nós procurava alimentar-se no decorrer da madrugada e o seu movimento perturbava, resultando numa lamentação barulhenta. Depois, contudo, voltava a dormir com a mesma tranqüilidade de antes.

Minhas primeiras semanas de vida transcorreram assim, nesse clima familiar. Ao amanhecer, minha mãe procurava nos deixar, o mais possível, aconchegados e bem alimentados com o seu leite generoso, enquanto ela saía por alguma razão que nem eu nem meus irmãos entendíamos ou conseguíamos aceitar. E lamentávamos sua ausência choramingando, procurando nos aquecer uns nos outros. Ouvíamos os mais diversos tipos de barulho em derredor, percebendo os odores mais assombrosos e tremíamos de medo de tudo, só queríamos estar com nossa mãe, mas ela demorava a chegar. Pelo menos a nosso ver. À sua vinda, finalmente, aliviados, sentíamos o seu cheiro de longe nos enchendo de incontida alegria.

Comecei a ensaiar os meus passos de iniciante num universo desconhecido ali mesmo, nas imediações daquele local que para mim significava um lar de verdade, quando já enxergava bem e não me era suficiente permanecer num único lugar sempre. Eu queria mais da vida, sair por aí descobrindo novidades, conhecendo outros gatinhos como eu e fazendo amigos por toda parte. Vibrava por enxergar outros ambientes e escutar novos sons. Havia em mim uma grande necessidade de movimento, de sair sem ter medo a explorar as redondezas. Sendo um tanto afoito em meus anseios ardia-me o desejo de aventurar-me até a esquina do beco, conhecer e ver o mundo lá fora, saber de onde vinha todo aquele barulho de monstros que passavam em alta velocidade e guinchavam de vez em quando feito bichos alucinados. Ou a origem das vozes incompreensíveis de animais altos com duas pernas que muitas vezes passavam pelo beco em estranhas atitudes.

A princípio meus irmãos me acompanhavam como se seguissem um líder, depois começaram a se espalhar pelos recantos em derredor e seguir cada um os próprios instintos. Perseguíamos baratas, grilos, lagartixas e pequenas rãs que aparecessem em nosso território, e quando agarrávamos um deles jogávamos como se ele fosse uma bola ou um brinquedo divertido. Porém, em pouco perdíamos completamente o interesse inicial e já partíamos em busca de novas diversões, cada vez mais nos sofisticando em nossas atividades e brincadeiras.

Certo dia, um desses seres esquisitos de duas pernas aproximou-se de nós, enquanto estávamos sozinhos, e carregou dois irmãozinhos meus, sob os nossos altos brados de protestos e tentativas inúteis de não permitir o seqüestro. Nossos gritos, contudo, não foram suficientes para fazê-lo desistir de seu intuito. E lá se foram meus irmãos para algum lugar desconhecido da cidade. Temi nunca mais voltar a vê-los.

Mas o pior aconteceu tempos depois quando, de súbito, fomos abandonados por nossa mãe. Isso mesmo, não é nada reconfortante reconhecer nem afirmar esse tipo de coisa sobre uma mãe, mas o caso é que ela se foi mesmo de repente, certo dia, e nunca mais voltou. Na verdade, nem sei se foi realmente abandono ou se algo muito grave aconteceu para ela nunca mais voltar para junto de nós, a fim de nos proteger do desconhecido e abafar nossos temores ingênuos. Perdê-la foi um golpe profundo, porque em praticamente tudo dependíamos dela. Esse inesperado e incompreensível fato caiu sobre nós como uma bruma negra ferindo nossos olhos, feito pedras de gelo enregelando nossos corações desencantados.

Em vão esperamos sua volta no horário em que ela costumava aparecer lá na esquina com seu andar cansado e cauteloso, as patas caminhando lentas, o corpo mirrado, mas os olhos brilhando de satisfação como se fossem duas estrelas especiais quando nos via e percebia que estava tudo bem conosco. Ela olhava para os lados certificando-se de que não estava sendo seguida ou por algum outro motivo que eu desconhecia, aproximava-se de nós, lambia-nos carinhosamente, ronronava cheia de mimos e deitava entre os trapos para nos abraçar com o seu calor, construindo nossa felicidade. Nada mais eu queria da vida nesses meus tempos de filhotinho aquecido pelo carinho dela, tão prestimosa e atenciosa comigo e meus irmãos. Naquele dia, no entanto, entardeceu e o sol se pôs, anoiteceu quase como se algum brincalhão apagasse a luz da tarde, escureceu e nem sinal dela. O céu pareceu-me até por demais ameaçador com suas nuvens escuras e raras estrelas, fazendo da noite um bicho papão perigoso. Eu lançava olhares apreensivos para todos os lados, externando temor e saudade nos olhares medrosos e nos trêmulos gestos, completamente apavorado, sem dúvida nenhuma, e esperava sua volta ainda com uma pontinha de esperança. Que horror, que horror!, aonde tinha ido minha mãe, e por que não voltava mais?

Não conseguíamos entender aquilo, parecia muito além de nossa incerta compreensão. Miando apavorados, surpreendidos ainda tão pequeninos por essa tristeza de perder a companhia de quem se mostrava tão importante para nós, daquela que nos provia com o necessário, ficávamos ziguezagueando de um lado para o outro chamando-a desnorteados, famintos, tristes, amedrotados. Tudo em vão. Vimos a noite chegar com sua escuridão apavorante e engolir-nos com seus ruídos aterradores, os monstros desconhecidos mostrando suas caretas, as aves de rapina noturnas voando rasteiro, as ratazanas dos esgotos com seus focinhos miudinhos e vivazes deitando sobre nós grandes olhos famintos, tudo a nos meter o mais completo pavor.

Sem saber o que fazer primeiro porque me vi como a presa nos dentes da fera, sem qualquer saída e dominado por um terror indizível, enlouquecido pelo suposto abandono, saí a perambular sem rumo me esgueirando pelas paredes e procurando nas proximidades o afago tão repentinamente perdido, esquecendo meus irmãos desconsolados cujo destino nunca mais eu soube depois de tudo isso. Vi as grandes luzes enchendo as ruas de claridade e o ir e vir de tantos desconhecidos, avistei também coisas e acontecimentos esquisitas no caminho, topei com a sujeira das praças e das ruas e com enormes animais de quatro patas, os cães vira-latas, fuçando as latas de lixo e obrigando-me a ficar escondido para não ser atacado por eles. E observei de longe os gatos adultos perambulando com focinhos mal-encarados que me arrepiavam os pelos, obrigando-me de igual modo a me esconder deles. Os lamentos contínuos e desconsolados pulavam de minha garganta seca como os clamores de um recém nascido perdido e sem rumo, à procura da mãe, embora eu já não fosse assim tão pequenino. Por vezes sentia que gritava quase esbaforido, mas aquietando-me assustado quando algo tenebroso surgia à minha frente, correndo para ocultar-me nalguma brecha que encontrasse até que o perigo desaparecesse. As noites escondiam tantos perigos inimagináveis para um gatinho indefeso como eu!

Andei à toa boa parte da noite sem saber aonde estava indo, terminando por deitar-me sob o banco de uma praça, agora inteiramente desconsolado e ciente de que estava só no mundo. A noite parecia ameaçadora e cheia de garras afiadas, assustava-me até o roçagar de papel no piso áspero da praça ou o farfalhar das folhas balançadas pelo vento. Sem minha mãe eu me tornara um reles bichinho indefeso na selva noturna. Miando sem parar como se esperasse que, por força de algum milagre inexplicável, minha mãe surgisse ao meu lado e me protegesse de tudo como fazia. Mas as coisas continuavam na mesma, não havia nenhuma saída para mim. Eu agora estava alheio a tudo, enterrado até o pescoço na própria autopiedade. Provavelmente eu morreria sem os cuidados da minha mãe, pelo menos eu assim pensava enquanto o tempo escoava e meus lamentos ecoavam sem direção.

Um gato vagabundo e de feições aterradoras que buscava novidades por ali se aproximou subitamente de mim e grunhiu por entre os dentes cerrados, mostrando-se aborrecido com minha presença e meus lamentos:

_ Cara, que choro besta é esse?

Gelou-me o coração, novamente o medo tomou conta de mim em maior intensidade. Tremi pelo corpo todo ao ver a fúria brilhando nos olhos frios daquele enorme gato que me encarava bufando de ódio. Além de ser grandalhão e encrenqueiro, o bicho tinha um aspecto grosseiro e apavorante, era o tipo habituado a meter-se em confusão a todo o momento, sentindo-se o dono absoluto de qualquer espaço onde estivesse e por onde passasse. Sua cabeça era enorme e se abria numa bocarra asquerosa de gelar a alma de qualquer um. Percebi que os finos fios do bigode dançavam ao sabor do vento que varria a cidade e espalhava a poeira. Calei-me tremendo da cabeça às patas. Meu mutismo o enraiveceu ainda mais. De repente ele, ainda mais enfurecido, levantou a pata direita e aplicou-me uma tremenda patada que me jogou longe.

_ Aqui é minha área, não quero malditos bebês chorões me incomodando! – Seu berro atordoou meus ouvidos. Meio tonto, com o focinho machucado e com medo de ser novamente agredido pelo grandalhão, disparei a toda levado pela força do instinto de conservação.

*

O tempo demorou a passar. Corri por ruelas e atravessei quintais enlameados, passei por avenidas com pouco movimento, quase fui atropelado por aqueles monstros de quatro rodas, pés insensíveis me chutaram, cães aborrecidos me intimidaram e eu fugi conduzido apenas pelo ímpeto instintivo. As estrelas lá no céu ainda brilhavam em meus olhos e a luz oscilava na minha mente entorpecida como se a estivesse hipnotizando. Não sei onde estava quando encostei meu mirrado corpo machucado e faminto numa parede qualquer, nem o exato momento em que apaguei de vez.

Despertou-me uma manhã ensolarada e barulhenta anunciando o continuar da vida com suas necessidades, apreensões, dúvidas e angústias. Fiquei ali olhando o nada com a mente sobrecarregada de emoções desencontradas e o estômago clamando por comida. No entanto, como e onde arranjar alimento se eu não tinha a menor noção de nada e nenhum senso de direção, sustentado que sempre fora pelas tetas amplas e fartas de minha mãe? Uma pequena poça d’água na sarjeta saciou-me a sede, então procurei ver melhor o lugar onde eu me encontrava. Um lugar ainda estranho para meus poucos conhecimentos geográficos e humanos, cheio de gente indo e vindo, e barulho, muito barulho. Eu me vi numa selva completamente à mercê de todos os perigos do mundo. Meu ainda incipiente instinto felino despertou ante o rastejar repentino de um ser esquisito, então, sem pensar, saltei sobre ele e meu estômago estremeceu de fome. Abocanhei-o, mastigando, engolindo seus pedaços. Eu precisava daquilo. Limpei as patas, passei a língua pelo focinho e recostei-me numa parede suja. Apesar de sozinho, agora estava mais ou menos alimentado e disposto a enfrentar os novos horizontes à frente.

Nesse momento vi uma mulher se aproximando de mim toda sorridente e afetuosa. Encolhi-me, receoso. Miei arregalando os olhos. Suas mãos afáveis me pegaram pelo dorso, tremi, mas logo senti algo nunca antes experimentado, o carinho tanto no tom da voz quanto nas mãos daquela fêmea humana. Relaxei, fiquei certo de que mal ela não pretendia me fazer. Confuso porém feliz, enrosquei-me nos seus afagos enquanto era levado não sei para que destino. Aquela mulher inesperada caminhou por ruas, becos e ruelas até subir num monstruoso transporte já quase transbordando de tanta gente, dali seguindo por lugares, praças e avenidas estranhas para mim. Interessante eu não ter sentido medo daquela mulher, mas talvez não fosse tão difícil assim entender a razão disso. É que o tempo todo ela me coçava o corpo e sussurrava palavras incompreensíveis trazidas até meus ouvidos como o som de gentileza, de conforto. Exatamente igual, até certo ponto, ao singular ronronado de minha mãe.

Conduzindo-me em seus braços, desceu do transporte, atravessou as faixas brancas da rua movimentada, andou dois quarteirões e entrou numa casinha simples, onde imediatamente um coro de miados e latidos a recebeu alegremente. Aberta num franco sorriso, ela falou com eles da mesma forma carinhosa com que falara comigo ao me encontrar. Devagar, cuidadosa, depositou-me em meio à ruidosa manada de gatos e cães, sendo recebidos por eles com o alegre alarido de quem acaba de acolher um membro da família. Eu acabava de encontrar um novo lar.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 20/05/2013
Reeditado em 25/05/2013
Código do texto: T4300743
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