Amor Animal
Sempre gostei de animais. A companhia de um gato ou de um cachorrinho tem para o meu espírito um efeito mágico, pois faz com que as preocupações corriqueiras se tornem insignificantes. Deixei em casa, aos cuidados de minha mulher, três gatos siameses, um angorá e dois cachorros. O que mais me preocupa no momento não é estar longe deles. A esta rotina já estou acostumado. Perco-me na contemplação dos meus bichinhos – às vezes horas a fio. Contudo, não posso assegurar o que na verdade me faz assim. Minha cadela deu cria essa semana e ao olhar um dos cachorrinhos, de pele marrom e barriguinha branca; seu jeito heróico de disputar o mamilo de Zora e aconchegar-se na mamada, de olhinhos semicerrados, mas atentos, minha memória é remexida e me leva a um dos períodos mais agradáveis da minha existência. Tinha eu então nove ou dez anos. Como filho único, conheci as vantagens e as desvantagens do mimo exacerbado na vida de uma criança. Então, costumava questionar minha mãe:
- Por que me sinto diferente das outras crianças?
- Você não é diferente, querido – dizia-me.
Parece que mamãe não me compreendia muito bem. Aos poucos, uma transformação, que já vinha insidiosa por dentro de mim, apoderou-se de vez do todo da minha personalidade. De bom falante, passei a circunspecto. De audacioso, passei a exageradamente medroso e tímido. Já ia pelos treze anos quando, só então, minha mãe se deu conta da seriedade da situação e decidiu fazer alguma coisa a respeito. Ver-me pelos cantos da casa, cabisbaixo e pensativo, fê-la preocupar-se a ponto de buscar auxílio médico. Mas, para a tranquilidade dela (ou para
o seu desespero), os exames nada acusaram. Eu sabia que não tinha nada, por isso tomei rédeas em assegurar-lhe tal fato. Então mantínhamos conversas. Uma vez sugeriu:
– Que tal um passeio? Vamos até a fazenda nos divertir um pouco! Aproveitaremos suas férias para uma mudança de ares. – Exultei de felicidade, era tudo o que eu queria.
– Quando partimos, mamãe?
– Assim que seu pai consiga uma licença. Vejo que está ansioso. Fico feliz por você, meu amor, vai se divertir muito. – Mamãe tinha razão; foi um dos períodos mais excitantes que já tive em minha vida e uma parte da minha infância que mais me deixou saudades e que dificilmente vou esquecer.
Nossa propriedade em nada ficava a dever às suntuosas chácaras das proximidades, famosas por pertencerem a conhecidas personalidades do mundo político e empresarial. Podemos hoje nos orgulhar de possuir tão aconchegante lugarejo para o deleite das nossas almas cansadas e oprimidas pelo alvoroço do mundo moderno. Papai não mais vive e mamãe até hoje desfruta da paz e sossego do Rancho das Amoreiras. Mas prossigamos com a minha aventura.
Teríamos todo um mês pela frente no contato com o nosso paraíso particular. A casa era a mais elevada de todas, por isso destacava-se na paisagem, além de proporcionar exuberante vista. Descíamos em grupo, quase todo final de tarde – eu e mais cinco garotos com os quais tinha afinidade – o caminho de terra ladeado de coqueirais. Com frequência, íamos montados em nossas prestativas bicicletas. Mas, quando queríamos gozar ao máximo as delícias dos nossos passeios, empreendíamos caminhadas. Aí não faltavam travessuras. Largávamos nossas camisas, deixávamos para trás os chinelos e corríamos felizes, cevando-nos da liberdade que era nossa, de corpo e alma.
Ante minha transformação, não havia felicidade maior para minha mãe, tampouco inveja, afetação ou seja lá o que fosse para esta minha outra turma de amigos; até me davam presentes. E um deles foi especial. Tão especial que causou transformação, não só no estado de espírito de uma criança inadaptada, mas no caráter de um homem, em tudo o mais, igual a todo e qualquer ser humano. E esta mudança foi para melhor (como não podia deixar de ser), pois, vinda do reino dos irracionais, chegou-me purificada de sentimentos outros, passíveis de ambiguidade pela alma humana, frágil e imperfeita. Um dos meninos da turma era Gabriel. Tinha mais ou menos a minha idade e, acabei descobrindo com a convivência, muitas das minhas aptidões e quase todos os mesmos interesses. Os finais de semana eram os mais propícios ao nosso relacionamento, pois a maioria dos outros meninos saia com os pais e Gabriel aproveitava as sestas da mãe para vir até minha casa, onde brincávamos muito e conversávamos outro tanto; um domingo foi especial.
Estava eu na varanda principal, ajudando papai a fazer a limpeza de nosso aquário. Saí, com um pequeno balde, até o arroio bem próximo dali, atrás da casa. Ao retornar, fui tomado de surpresa. Parei; perplexo. Diante de mim estava Gabriel. Quase trombei com ele quando já ia chegando à varanda. O que desviou minha atenção não foi propriamente Gabriel, mas o que vinha depois dele. Era um ser matreiro, despojado do fator humano, essencial à civilidade. Mas dotado de inteligência suficiente para uma convivência sobremaneira excelente; era um macaquinho.
- Gostou? – Foi a pergunta do meu amigo, antes mesmo de me cumprimentar. Ele detectou instantaneamente a minha expressão inusitada. Olhou por trás e estendeu a mão. O animal, incontinenti, correspondeu ao sinal e pegou a mão dele.
- Você nunca me disse que tinha um macaquinho! – falei, pousando no chão o balde. Meu amigo sorriu no seu jeito próprio.
- Você nunca me perguntou – respondeu, mantendo o mesmo sorriso sardônico. Fez um pequeno gesto e o animal pulou para o seu colo. Gabriel fez então umas cócegas em sua barriga e o bicho desatou a dar grunhidos de prazer e mostrar os dentes, abrindo e fechando os enormes beiços.
- Qual o nome dele?
- Dela, você quer dizer. Chamamos de Pisca, de tão miúda que é. Não é uma gracinha?
- Como conseguiu, quem deu a vocês?
- Ninguém deu, achamos.
- Acharam?! Não sabia que havia deles por aqui.
- É claro que há, mas não muitos. Mas não foi por aqui que a encontramos; foi na fazenda de papai. O que você acha do nome que dei a ela?
“Até que não é descabido”, pensei cá comigo antes de dar-lhe a resposta. Fiquei a observar o animal. Era jeitoso, muito ágil e sabia fazer graças. Gostava de dar pulos nas pontas dos pés quando menos esperávamos; ao mesmo tempo em que passava alacremente a mão livre pela cabeça empoada de suas travessuras pela terra. Quando fui cumprimentá-la, agarrou minha mão e fez como se fosse beijá-la ou algo assim. Logo um repelão dei e me libertei. – Não precisa ter medo – falou Gabriel. – Esta é somente a sua maneira de demonstrar carinho; se lhe der a mão, vai acariciar a própria cara com ela. Significa que gostou de você. Irá zangar-se se recusar; vai achar que está sendo desprezada.
– E o que fará se eu negar mesmo meu carinho?
– Tente e saberá. – Achei melhor não seguir este conselho de Gabriel. Pisca já me encarava um tanto desconfiada e eu tive medo.
– Vou dar de novo minha mão a ela; não tem perigo?
– Absolutamente; é isto que está querendo. – Pisca beijou o dorso de minha mão direita. A princípio senti repulsa; não por causa do beijo exatamente, mas devido a um contato estranhamente peculiar, o que me fez estremecer. Porém, aos poucos, fui me acostumando com ela e ela comigo. Perdi o medo de ter meus carinhos retribuídos com beijos e pulos de satisfação e alegria. No dia seguinte e nos outros, consegui uma total identificação com nossa amiguinha. Quando Gabriel não aparecia em nossa casa, eu o procurava. Pretextava qualquer coisa para passar uma parte do dia, alguns minutos que fosse, ao lado de Pisca.
Todos os outros meninos, acostumados que estavam com a minha presença constante nos arredores, pelas vinhas e alamedas do lugar, iam e vinham a minha casa para saber de mim. Apareciam em grupos de três ou cinco ou em par procurando-me para brincar. No começo dizia papai que eu havia retornado para o Rio de Janeiro. Depois, pela insistência deles conseguiram saber do meu paradeiro. Um era Adolfo, o mais levado da turma. Adolfo não gostava de animais e vivia arrumando encrencas com a vizinhança por maltratar gatos, coelhos, cachorros e outros bichos de estimação. Eu nada tinha contra ele pessoalmente. Sabia de suas aventuras deslustrosas, mas, por mais que desaprovasse sua conduta, tão oposta aos meus sentimentos, esforçava-me para não permitir que isto maculasse o nosso relacionamento, até ali sem problemas. Contudo, apesar dos meus cuidados, Adolfo conseguiu aborrecer-me. Numa manhã, chegou só à casa de Gabriel; eu, como de costume, encontrava-me lá, distraindo-me com as brincadeiras de Pisca.
- Você não faz outra coisa agora a não ser brincar com esta macaca? – disse Adolfo em tom de escárnio; eu nada respondi. Estava nesta hora descascando umas bananas que arrancava de um cacho no chão entre minhas pernas. Era muito engraçado quando Pisca, vez por outra, não me dava tempo de descascar a banana. Tomava-a de minha de minha mão e, muito calmamente, desnudava a fruta e passava a comê-la, mostrando os dentes. – Todos perguntam por você durante as peladas. Hoje é a decisão do torneio; você não vai?
Naquela tarde compareci ao futebol e, claro, Pisca estava comigo. Adolfo, que era do time adversário, não conformado com a derrota, propôs uma revanche. Chamei Gabriel à parte
– Muito bem, decidimos aceitar – falei. – Quando será o jogo?
Não tínhamos porque perder; e não perdemos. Adolfo não imagina o quanto fiquei contente com aquilo. Não propriamente por ter vencido o jogo, mas por ter tido a satisfação de lhe ver no rosto o desfalecimento do seu jeito piegas, do seu orgulho vulgar.
Com este episódio, ganhamos algumas inimizades. Mas isto não me preocupou, muito menos ao Gabriel. Na verdade, até achou melhor que assim fosse. Ao contrário de mim, como morador que era do lugarejo, conhecia de verdade cada um daqueles moleques; sabia que não perdíamos nada afastados da turba de Adolfo. Sendo assim, continuei fazendo o que mais me trazia prazer e alegria no nosso rancho pelas últimas duas semanas da minha estada ali que era me divertir na companhia de Pisca. Logo, para meu desencanto, chegamos à manhã de segunda-feira da última semana de nossas férias. Mas o destino mudou o rumo dos fatos e as consequências foram imprevisíveis. Vou contar o que aconteceu.
Já na terça-feira comecei a perceber uma ligeira, mas nítida alteração no comportamento e nas atitudes de Pisca. Gabriel já me havia prevenido quanto a isto. – Com certeza vai sentir falta da mãe – me dizia. – Quando acontecer, não estranhe; apenas dê-lhe mais carinho e atenção. Desse jeito não terá problemas com ela.
Ninguém, a não ser eu, conseguia aproximar-se de Pisca sem ver-se expulso por seus gritos e tentativas de ataques violentos e irrepreensíveis. Muito a contra gosto tive que acorrentá-la ao pé de minha cama. Eu não queria incomodar mamãe mantendo Pisca por mais um dia em nossa casa. Portanto, no dia seguinte bem cedo, após uma arrumação ligeira no quarto, que mais parecia uma arena em final de espetáculo, levei Pisca ao seu dono. Meus pais ainda dormiam quando fechei lentamente a porta atrás de mim, com a macaca bem segura em minhas mãos por uma curta correia de couro, ligada a uma coleira bem folgada em seu pescoço.
Atravessei com ela os pouco mais de dez metros entre nossa varanda e a cerca da propriedade e ganhei a rua. Em dado momento, descuidei de Pisca e deixei que me escapasse das mãos. Arisca como ela só, e empuxada por sua extrema necessidade e falta da mãe, Pisca distanciou-se muito rapidamente de mim, numa velocidade fora do comum. Fiquei totalmente aparvalhado ao vê-la desaparecer no meio dos arbustos que margeavam aquele trecho da alameda. Corri para alcançá-la, mas tropecei no meio do caminho, perdendo-a totalmente de vista. No auge do meu desespero, apelei para os gritos, último recurso, em forma de apelos lancinantes. Vi-me correndo sem rumo, bracejando e chamando por seu nome.
Foi inútil minha agonia. Quando dei por mim, não sabia mais onde me encontrava nem quanto tempo tinha corrido. O cansaço me dominou e eu deixei-me cair sentado sobre a relva. Havia atravessado um enorme trecho de floresta e estava agora há poucos metros da margem de um rio; não conhecia aquele trecho e por momentos tive medo de estar perdido. Mas isto me importava menos naquela hora do que a tristeza do desaparecimento de Pisca; e a possibilidade de não vê-la nunca mais ainda me assombrava e desanimava totalmente. O contraste entre meu estado de espírito e tudo o mais em derredor era realmente marcante. Meu ser, distante e sorumbático, sucumbia à realidade, combalido de dor e despojado de esperanças. Porém, Vencido por esta quietude inebriante, a funcionar como um chá de ervas calmantes e aromáticas, adormeci.
Todavia, minha lucidez momentânea deu lugar ao mal estar próprio de quem se vê horas privado de alimento. Antes, porém, precisava mitigar minha sede e refrescar-me a fim de suportar o enorme calor. Levantei-me e fui até à beira do rio. Após lavar-me e beber água, senti voltar um pouco minha energia. Então deparei com algo que poderia chamar de compensador para quem se encontrava só e desamparado como eu. O que vi, a princípio deixou-me assustado. Depois compreendi a imprecisão de qualquer temor ou cuidado. De onde eu estava, até o que meus olhos testemunharam, iam mais de trinta metros, incluindo a largura do rio, bastante considerável. Uma gárrula e incessante procissão dos macacos cinzentos passou a desfilar no alto das árvores, ante meus olhos aterrados. Pareciam ser da mesma família de Pisca, mas de uma espécie diferente e, com certeza, muito mais feroz.
Pensei que a colônia fosse infinita, pois à medida que iam passando, outros iam surgindo, numa sucessão sem fim. Mas logo percebi que estavam dando voltas nas árvores, tanto nas partes baixas quanto nos galhos próximos às copas. Gritavam e batiam palmas, dando a impressão de estarem se divertindo com alguma brincadeira interessante.
Decerto, a distância e o rio davam-me bastante segurança e proteção contra um possível perigo. A água era de um tom suave e calmante e de coloração magenta, quase esverdeada. Porém, pouco a pouco, sua estabilidade foi-se modificando e a quase perene tranquilidade fez-se invadida. Notei de imediato a mudança e até abandonei por instantes a minha visão para olhar o rio em toda a extensão que pude captar. As águas, agora meio revoltas, tinham razão de ser. Ao longe vi uma canoa que singrava em minha direção. Tive tempo suficiente para sair da água e colocar-me em segurança e, evidentemente, em estado de alerta.
Apenas pus meus pés em terra firme e não mais que uns três metros distanciavam-me da embarcação; vi então quem a ocupava. Era Adolfo e mais um menino (não sei se poderia chamá-lo assim) que também havia participado da pelada, jogando contra nosso time. Guto, como era chamado, se era adolescente, não mostrava isso no porte físico, muito menos no aspecto. A quantidade de sua força só se igualava a de sua fealdade. Tinha porte de adulto, mas não passava disto. Algo me dizia que o contato com aqueles dois seria indício de mau agouro e um péssimo dia para o meu dia já péssimo.
– Olha quem está aqui! O nosso campeão de futebol – Adolfo soltou estas palavras assim que conseguiu reconhecer-me e mesmo antes de encostar a canoa.
– Olá, Adolfo! Oi, Guto! Como vão? – Procurava agir naturalmente, mas o esforço era grande porque sentia medo deles. Não me cumprimentaram. Desceram e puxaram a canoa para terra; Guto veio em minha direção.
– Boa tarde! – disse, estendendo-me a mão. Seu tom era sarcástico; eu correspondi sem dizer palavra. Ele prosseguiu: − Não sabia que era tão bom de bola. Não gosto nada de perder. Aliás, fico furioso quando isto acontece; não é mesmo, Adolfo? – Adolfo nada respondeu. Tinha toda a sua atenção voltada para o alto das árvores, onde os bichos continuavam envoltos em seu espetáculo particular. – Olha! – falou para o amigo, que não lhe deu muita atenção embora tivesse ouvido perfeitamente – aqueles não são os macacos cinzentos? Não podemos ficar muito tempo aqui, Guto, vamos embora. O sarcasmo de Guto misturou-se ao meu desespero. Comecei a pressentir algo de vingativo em suas atitudes.
– Vocês jogaram muito bem; só ganhamos mesmo porque tivemos muita sorte – falei, para ver se criava um clima um pouco mais amistoso.
– Você parece meio pálido e abatido! Será que tudo isto é medo? –
Embora o medo fosse indisfarçável, dei-lhe outra razão para o meu estado não menos verossímil para a interpretação de Guto.
– É fome; não como nada há quase doze horas. – Notei na expressão dele, a princípio, uma leve demonstração de surpresa, que quase confundi com comiseração, mas logo vi o quanto me equivocara, pois não demorou para que um sorriso malévolo se estampasse em sua fisionomia. Ele virou-se para o companheiro e disse, ainda mantendo a mesma expressão debochada.
– Com que então o nosso amiguinho está faminto, você não ouviu isto, Adolfo? – Sem esperar resposta de Adolfo, que não deixava de olhar para o alto, continuou: – Então, pode considerar-se um rapaz de sorte. Acabamos de fazer uma deliciosa refeição. Mas não se preocupe; ainda sobrou muita coisa e vamos ter o prazer de oferecer a você, não é, Adolfo?
– Bem... Não precisam se preocupar comigo – eu disse.
– Imagina! Não é preocupação nenhuma. – Já estava de costas e dirigia-se à canoa quando disse estas palavras. Agachou-se e olhou por debaixo de um dos bancos Até que, num dado momento, a canoa estancou ao peso do que ele procurava. Vi então o que era; um enorme cacho de bananas punha-se à vista agora, seguro pelas mãos de Guto. Da areia, arrastou-o, não sem dificuldade, até onde eu me encontrava. Largou o fardo incômodo e deixou-se cair sentado no capim rasteiro, apoiando o corpo cansado sobre os braços esticados para trás. Ante minha expressão estupefata, antevendo suas intenções, falou, quando se viu refeito:
– Não precisa nem agradecer pelo banquete fausto que te espera. Oito dúzias de bananas não deve ser muito para quem se encontra há doze horas sem comer; são exatamente oito bananas a cada hora. Eu consigo, com muita facilidade, devorar oito bananas em cada hora, você não, Adolfo?
– Sim, Guto, sem problemas, sem problemas; mas vê se acaba logo com isto e vamos cair fora daqui.
O enorme cacho encontrava-se aos meus pés. A mim só restava abaixar e começar a comer as frutas; foi o que fiz. Devo confessar que nunca me pareceram tão deliciosas. A primeira dúzia quase que não senti descer para o meu estômago. Eu apanhava as frutas, uma a uma e, bem lentamente, descascava-as. E, enquanto mastigava-as atirava por cima da cabeça de Guto, de costas para o rio, as cascas sobre as águas. Estas, alheias à cena, cumpriam o seu papel de conduzir alhures o corpo estranho para um destino ignorado.
A certa altura do ato forçado pelo sadismo pueril daqueles malvados pequerruchos, comecei a sentir mal estar. Então, parei de súbito, levando uma das mãos ao estômago. Nessa hora abaixei-me para melhor suportar a dor que ameaçava abater-me. Quando olhei para Guto vi, ou imaginei ter visto, um monstrinho encarnado em sua fisionomia. Imediatamente veio-me à lembrança as ameaças de mamãe sobre esses seres do outro mundo, em forma de duendes maus ou bichos papões. Quando associei as duas situações, meu mal estar aumentou e deixei-me cair sentado e quase sem forças.
– O que está esperando para terminar sua refeição; está faltando alguma coisa? Pena não ter por aqui alguns pedaços de pão para acompanhamento... Ah! ah! ah!
Era só o que faltava. Minha sentença final fora promulgada através destas últimas palavras de meu algoz; fim das minhas esperanças. Porém Adolfo encontrava-se quase tão pálido e assustado quanto eu. Será que a simples visão dos macacos seria suficiente para deixá-lo assim?
Acuado, consegui, com muita dificuldade, ingerir mais umas quatro ou cinco bananas. Até um ponto em que Guto passou a não mais esperar que eu, na minha lentidão doentia, descascasse as frutas e as levasse até minha boca, num gesto tão normal quanto seria esperado de alguém no meu estado. Levado por um impacto, não sei se de fúria ou de leviandade, ele começou a arrancar do cacho as bananas, trazendo duas ou mais em cada repelão que dava. Em cada sequência do seu ato tresloucado, enfiava em minha boca de tal forma estouvada as frutas, que as inocentes esmagavam-se e eu não conseguia fazer coisa outra que tentar cuspi-las e assim evitar que fosse por elas sufocado.
Foi quando, no auge da minha agonia, comecei a gritar desesperado para que parassem com aquilo. – Pelo amor de Deus, Guto, você vai acabar me matando desse jeito; estou ficando sufocado. Pare, por favor! – De cima a baixo, eu era só imundície, minhas roupas estavam imprestáveis. Cascas e melado de banana por todos os lados, em cima e ao redor de mim, desfiguravam por completo o meu aspecto. Guto limpava as mãos em meus cabelos e corpo, enchendo-os de nódoa, enquanto proferia expressões de delírio sádico e mordaz.
Porém, não seria desta vez que iria sucumbir às torturas destes dois desajustados. A salvação veio do céu em resposta às minhas orações silenciosas. Quando já perdia todas as forças, ouvi um troar de galhos secos que se partiam, seguido de lancinante grito. Guto arregalou os olhos para cima e fez uma expressão de espanto sem precedentes para mim. Como uma lebre, largou meus ombros e correu, tentando ganhar o rio. Mas, prestes a alcançá-lo, foi violentamente jogado nas águas, graças a um certeiro baque que recebeu nas costas, tirando-lhe o equilíbrio. Adolfo, não sei como, já se encontrava dentro da canoa, empreendendo esforços para livrar o amigo de uma ridícula situação.
Vi ainda o suficiente para compreender a razão daquele desespero. As remadas de Adolfo e agora as de Guto atrás dele na embarcação, eram tão fortes e aceleradas que os carregaram dali e fizeram com que, em questão de segundos, desaparecessem como pó na primeira curva do rio. Não fui capaz de contar, mas asseguro que mais de uma dúzia daqueles macacos que brincavam e alardeavam no alto das copas carregadas dos palmeirais, pulavam alvoroçados na beira do rio, de ambos os lados. Quanto a mim, sucumbi, quando o toque peludo de duas mãos negras envolveram meus ombros. Depois disto, tudo era escuridão.
Voltei a mim, refeito de alguns males e grávido de outros de natureza indescritível. Tão estranho quanto o meu estado só mesmo o lugar onde agora me encontrava e, o que era pior, as criaturas que me rodeavam. Já era manhã do outro dia; teria eu passado ali a noite? Teriam aqueles seres me transportado? Aos poucos, à medida que recobrava a minha lucidez, fui dando conta da minha situação, estranha e inusitada situação. Quatro macacos rodeavam minha cama improvisada à sombra de uma palmeira. Tentei levantar-me para correr dali, mas fui impedido. Deitaram meu corpo nu, sem, no entanto, empreender qualquer violência. Estranhei gestos tão delicados vindos de animais selvagens como aqueles. No entanto, qual não foi minha surpresa quando reconheci Pisca entre meus anfitriões! Eles deram passagem para que ela se aproximasse, trazendo um coco em uma das mãos e umas frutas estranhas na outra. Apesar de tudo, consegui esboçar um sorriso de satisfação, mas não sei se poderia também dizer segurança.
Não vou chegar ao extremo de afirmar que me senti protegido. Mas vivi uma experiência que sinto prazer em narrar e, cada vez que o faço, torno a revivê-la em meu espírito. Mas nunca encontrei nem encontrarei palavras para descrevê-la. Excluo aqui detalhes dos meus quinze dias passados na convivência dos macacos cinzentos e de Pisca. E foi por intermédio dela e com sua ajuda que logrei conquistar a minha, por assim dizer, liberdade.
Apesar da minha pouca idade e do conhecimento ainda primário de nossa língua, pude elaborar um sistema de comunicação com pisca, através do uso de sinais. Aproveitei os que ela já utilizava, coloquei-os para funcionar dentro de um padrão favorável às nossas necessidades. E a esses juntei outros, formando uma espécie de código manual de emergência. Isto acabou por funcionar melhor do que eu esperava. A falta de proteção materna é fator comum entre todos os seres e, neste ponto, para minha sorte, tinha-o em comum com minha amiguinha. Em nossos diálogos, chegamos a um acordo. Prometi a Pisca que de tudo faria ao meu alcance para levá-la de volta à presença de sua mãe. Em troca, poderia, com a ajuda dela, encontrar a minha. E foi isto o que aconteceu; conquistei sua confiança e ganhei minha liberdade.
Caía a tarde quando entrei no rancho ao lado de Pisca. Quando alcancei a antessala vi mamãe através da porta que estava entreaberta. Por alguns minutos, com Pisca ao meu lado, segurando uma de minhas mãos, permaneci imóvel, com certo receio de causar-lhe um choque com minha chegada inesperada. Ela estava sentada na poltrona menor, mostrando-se de perfil; sobre a mesinha de centro, um vidro de remédio e um copo com água pela metade.
Deixei então que ela avistasse o animal e, por associação, descobrisse a minha presença. Não precisei de muito tempo para que isso acontecesse. Mamãe, numa fração de tempo inacreditável, já me tinha em seus braços apertado, compartilhando com ela um momento inesquecível de felicidade e reencontro.
– Oh! Meu filho, onde você andou todo este tempo? Como tenho
sofrido!
– Estou aqui, mamãe, estou aqui!
– Sim, graças a Deus você voltou, estamos juntos novamente; mas me deve uma explicação, temos muito que conversar.
E foi assim que tudo aconteceu. Embora não tenha obliterado um detalhe sequer do ocorrido comigo naquelas duas semanas em que me afastei de casa, não posso afirmar que consegui convencer as pessoas a quem relatei minha experiência.
Pisca viveu mais nove anos, durante os quais não houve paradeiro mais ansiado e propício às minhas férias. Quando já trabalhava e era maior e independente, discordava de mamãe quanto à existência de outro refúgio mais adequado ao nosso descanso anual e lá ia eu em direção a minha predileta aventura. Até que, com a morte dela, morreu também meu interesse pelo rancho, ou melhor, nunca haveria, então, lugar tão impróprio para as minhas férias. A lembrança de Pisca ficaria em meu coração somente ou, quem sabe, não suportaria o contato com o que foi nosso e deixou de ser. Nunca mais voltei àquele lugar. Tenho hoje uma bela propriedade rural, onde os animais fazem parte do meu espaço. Possuo várias espécies: cachorros, papagaios, cavalos e até uma onça. Mas a espécie de Pisca não tem vez por aqui. Só ela existe e continuará existindo e a razão é simples: Embora o meu amor por animais continue em alta, o que fui com Pisca e o amor que senti naquela época – pueril, quem sabe? – não existe mais. Morreu com ela.