A Tempestade
Às vezes a vida tira algo importante da vida de uma pessoa ou traz alguma coisa especial. Naquele dia, ela me trouxe ambas.
Meu nome é Isabel e na época, eu tinha 13 anos. Morava com o meu tio, minha mãe e minhas duas irmãs mais novas na casa que meu pai construiu antes de morrer numa estúpida tentativa de assalto perto de onde ela foi construída, em uma favela perto de um córrego. Eu estudava de dia em uma escola bem longe de casa e cuidava das meninas no resto do dia enquanto os adultos trabalhavam muito e ganhavam pouco. Apesar da fome, do frio e da chuva que quando era muito forte deixava um tapete de água de dois dedos de espessura pela casa destruindo os pés dos móveis, eu tinha o sonho de ser professora. E para tanto, me esforçava em estudar.
A biblioteca da escola não era das melhores e a mais próxima de onde eu morava era em outro bairro e minha mãe não podia se dar ao luxo de pagar uma passagem de ônibus para mim para tal tipo de coisa. Então eu guardava uns trocados e ia pra lá nos fins de semana. Eu sempre ia só, porque não tinha amigos na escola. Embora vivêssemos na periferia, os garotos não queriam andar comigo, uma garota magricela de roupas remendadas.
Um dia eu fui à biblioteca e vi um homem na entrada vendendo livros. Eu não tinha muito dinheiro, mas resolvi dar uma olhada no material dele. O porta malas do carro dele estava recheado de apostilas para concursos públicos e livros de literatura pro Vestibular. Mas o que me chamou a atenção foi uma pilha de livros infanto-juvenis, onde o primeiro exemplar tinha um garoto na capa sendo perseguido por uns adultos com o título As Aventuras de Alex Michigan.
— Esse aí é um bom livro, garota. Era da minha filha. – disse o vendedor.
— Mas eu não tenho muito dinheiro...
— Quanto você quer dar neste livro? – perguntou o homem.
— Não posso dar muito... só tenho o dinheiro da passagem e do café com pão pra comer de tarde. – confessei. Não estava tentando me fazer de vítima. Só não queria mentir para ele, visto que eu não ia ganhar nada agindo desta maneira.
O homem deu um suspiro e falou bem perto de mim:
— Minha filha tinha a sua idade quando leu este livro e o emprestava para várias amigas, dizendo que o garoto da capa era o garoto que toda garota deveria conhecer. Faz o seguinte: como hoje não tenho muitos clientes, pode ficar com ele. Tá legal?
— Sério? Puxa, moço. Muito obrigada...
E assim, fui pra casa com o meu primeiro livro.
***
Logo na primeira página, estava escrito:
“Olá. Sou Alex Michigan, tenho 15 anos e moro na mansão dos meus pais, os lendários arqueólogos George e Margareth Michigan, nos Estados Unidos. Recentemente recebi uma carta do chefe deles, o Sr. Charles Koogan, comunicando o desaparecimento deles em sua expedição na Grécia. Quer me ajudar na companhia do eu mordomo e ex-agente do Serviço Secreto Britânico, o “sir” James Holykigdom na busca por eles? Basta tomar as decisões certas”
Achei estranho. Nunca havia lido um livro assim. Prossegui a leitura e no final do primeiro capítulo, estava escrito:
“O voo dos meus pais fez escala em Lisboa antes de chegar em Atenas. Se quiser que eu comece na capital portuguesa, vá para a página 23. Se quiser que eu vá para a Grécia, vá para a 42”
Resolvi ir com Alex para a Grécia e ele começou o capítulo dizendo:
“Gostei de você. Não me fez perder tempo em Lisboa, já que a carta de Koogan me disse que eles sumiram na Grécia (...)”
Aquilo me tocou profundamente. Gostei de você... ninguém que não fosse meu parente me disse aquilo antes. E continuei lendo.
***
Os dias se passaram e mesmo como babá ou estudante, não desgrudava do meu livro. Eu e Alex passamos por diversas aventuras por Havaí, Pequim, Istambul e outros lugares. Encontramos grupos terroristas, resolvemos enigmas e muitas vezes, se não fosse pela nossa astúcia, contávamos com as habilidades do “sir” James. E em muitas ocasiões, Alex falava comigo:
Você é muito inteligente. Parabéns por resolver o enigma da pirâmide...
Tem certeza que não podemos ajudar o meu mordomo na luta invadindo o Museu do Louvre? Sei que arriscado, no entanto eu acredito no meu potencial tanto quanto confio em você...
A nossa viagem agora vai me levar pra Sidney, capital da Austrália. Estou com um pouco de medo, mas com você ao meu lado dará tudo certo...
E assim prossegui com a leitura, ao lado do primeiro homem que não viu em mim uma garota pobre ou mal vestida, reconhecendo minha garra e a minha inteligência.
***
Um dia estava chovendo forte e eu estava indo pra escola, carregando meu livro na mochila e manobrando com o guarda-chuva em meio aquele caos de vento e água para todos os lados quando ao sair de onde eu morava, um carro passou perto da calçada e no susto da água das poças me molhar, caí no declive e fui rolando até uma das árvores plantadas perto do córrego, para firmar o solo. Infelizmente a minha bolsa rasgou e meu livro caiu na água, sendo levado. Eu olhei pra ele e gritei pensando em pular quando uma mão forte veio por trás de mim e me segurou. Era um garoto que morava perto da minha casa e eu o conhecia de vista. Ele me ajudou a sair de lá perguntou:
— Você está bem?
— O meu livro... eu perdi meu livro...
— Oh... sinto muito. Você se machucou?
— Estou com um pouco de dor... só que eu perdi meu livro...
— Dor? Aonde?
— Eu não sei... – e comecei a chorar enquanto murmurava –... o meu livro... eu o perdi...
— Olha, vamos ficar ali debaixo do toldo daquela loja fechada. Aí veremos se não perdeu mais nada, ok?
Fomos apesar da minha relutância. Ele me pegou pela mão e me ajudou a atravessar a rua. Vimos que eu só tinha um arranhão no braço e um inchaço na testa. Ele me disse:
— Você estuda na escola Isaac Christie, não é?
— Sim. Como sabe? – indaguei.
— Eu vejo você indo pra lá todos os dias. Sou de outra escola perto de lá, a Clarice Queiroz. Conhece?
— Sim. Meu nome é Isabel. Qual o seu?
— Alex.
***
E assim, numa manhã de chuva a vida me trouxe um Alex cheio de vida, que me viu e me deu uma chance de viver ao lado dele até hoje... em troca de outro.